Azul e rosa (I/II)

Eu já escrevi sobre isto aqui: meu pai achava que uma família tinha que ser constituída de acordo com suas possibilidades de viver sem dificuldades maiores. No caso dele, dois filhos era o limite. Dois anos depois de casados, meus pais tiveram o primeiro filho… E, quatro anos depois de meu irmão, bem planejado na tabelinha católica, trabalharam pelo segundo. Que, no desejo de minha mãe, deveria (ou precisava) ser uma menina.

Quando a gravidez se confirmou, ela se preparou para receber uma filha (nos anos 40, não se conseguia saber o sexo de uma criança antes dela ser expelida… só se apelasse para as crendices populares, tipo formato da barriga ou o teste das mãos. Mas, meu pai era médico e crendices não valiam!… só a torcida!). Casaquinhos rosas, pijaminhas rosas, lençòizinhos, colchinhas, mantinhas… tudo rosa! E nasci eu… lindo, louro e róseo… mas com pinto!

Diz minha mãe que foi uma correria para arrumar vestimentas adequadas a um menino. Eu tenho minhas dúvidas: a gente morava fora da cidade (meu pai era o direto de um leprosário em Bambuí, Minas, e foi ele mesmo que fez o parto, porque tinha chovido muito no dia anterior, a estrada podia estar interrompida e não dar tempo de chegar no hospital da cidade). Ou seja, minhas primeiras vestimentas foram rosas mesmo… E eu não virei mulher…  ou bicha!

Eu estou lembrando disto em razão das declarações da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que disse que o Brasil está em “nova era” em que “menino veste azul e menina veste rosa”. Partidos de oposição, intelectuais, artistas e muitas pessoas politicamente conscientes da nossa sociedade caíram de pau sobre a pastora, inclusive figuras conhecidas do conservadorismo pátrio, como Luciano Hulk e Miriam Leitão.

Sob intensa crítica, ela explicou: isto é uma metáfora!! A ideologia está ideologizando as nossas crianças e nós precisamos acabar com isto. Teve gente que acreditou. O povo brasileiro é a coisa mais fácil de ser enganada. Na real, Dona Damares está empenhada em aumentar o rebanho de sua crença neo-pentecostal e, para isto, usa de todas as suas prerrogativas de pastora (pregando em todos os púlpitos evangélicos Brasil adentro) e de assessora de parlamentares no Congresso (viajando com dinheiro público para suas pregações privadas).

Com isso, emprenha suas plateias com sandices pseudo científicas,  onde contrapõe a evolução dos costumes da sociedade e da própria humanidade com Deus, família, sexo e moralidade individual ou grupal. Em pouco tempo de presença na mídia, suas palavras, seus vídeos e suas ações  atingiram níveis inauditos de compartilhamento, tornando-a mais popular, negativa e positivamente, que estrelas do quartel bolsonarista.

Um dos mais visualizados vídeos da Ministra é aquele em que ela fala, gesticulando muito, nas 70 identidades sexuais que estariam sendo ‘ensinadas’ pelos professores das escolas públicas aos pobres meninos e meninas do Brasil, completando sua indignação gestual mostrando cartilhas em que a família tradicional (pai, mãe e filho) são caipiras, mal vestidos e feios, enquanto a família moderna (homossexuais e filho) são lindos, bem vestidos e felizes… Isto em desenho rudimentar, pô…! (quem estiver interessado em ver o ridículo desta afirmação, pode ver os desenhos aqui neste blog, em ‘O brasileiro no poder, enfim!’ (III/III) ou comprar a cartilha…

Evidentemente, não ficou só nisso. Ela faz afirmações do tipo: “Como eu gostaria de estar em casa, toda tarde numa rede, me balançando e o meu marido ralando muito, muito, muito para me sustentar e me encher de joias e presentes. Esse seria o padrão ideal da sociedade” ou “As feministas [estão] levantando uma guerra entre homens e mulheres” ou  “Chegou a nossa hora, é o momento de a Igreja ocupar a nação. É o momento de a igreja dizer à nação a que viemos. É o momento de a igreja governar” ou “16 anos atrás, dizíamos que íamos ter uma ditadura gay no Brasil. O que nós estamos vivendo hoje? Uma ditadura gay. Há uma imposição ideológica no Brasil e quem diz que não aceita, é perseguido” ou “Nós vamos ter que cuidar da mulher na infância, na escola. O menininho de 3 anos vai aprender que a menininha merece ganhar flores. O menininho de 7 anos vai poder levar chocolate para a menina porque a menina é especial” ou, por fim, “Vamos tratar meninas como princesas e meninos como príncipes“. Uma gracinha, como diria Hebe Camargo!

Tenho a impressão que a crença neo pentecostal tem uma visão claramente machista de Deus. Tanto pastores quanto pastoras pregam muito a preservação da família tradicional, em que o lugar da mulher é em casa, cuidando dos filhos e, óbvio, dos maridos… e, geralmente, esquecem o livre arbítrio que este mesmo Deus outorgou ao ser humano.

Seja como for, as afirmações de dona Damares  incendiaram as discussões na imprensa e, principalmente, nas redes sociais… suplantando outras decisões iniciais do quartel bolsonarista e, até, o meme “Onde está o Queiróz?”, um dos ‘trending topics’ ‘do período de festas de final de ano. E como não incendiar? Se ela dá a entender que a evolução das espécies é um perigo?

Eu sou um jornalista da velha guarda. Que se virou na profissão num tempo em que ‘acreditar’ era um verbo não declinável por nós. Ou seja: a gente tinha que duvidar sempre, do fato, da versão de cada uma das partes, do que parecia ser, das intenções de vítimas e criminosos… Assim, uma informação, por mais ‘quente’ que fosse, antes de ser datilografada, tinha que ser checada e checada de novo com, pelo menos, umas três fontes.

Me lembro de uma das poucas notícias que escrevi no Diário da Tarde – eu nunca fui um bom repórter, como já escrevi aqui: cobrindo uma Delegacia de Polícia de madrugada, eu acreditei na história de um garoto de 18 anos que fora preso por assaltar ônibus – cobrador e passageiros – no Calafate, um bairro classe média baixa de Beagá. A perda da mãe, o pai sempre bêbado, a perseguição no grupo escolar por ser ‘escurinho’ e miserável… Reportei a história dele como justificativa de sua vida de assaltante. Não era verdade! Ele tinha pai motorista de ônibus, mãe empregada doméstica e aproveitava a ausência de pai e mãe em casa para arrumar o dinheiro dos ‘baratos’ da vida, principalmente conquistar garotas levando-as a cinemas, botecos  e outras paradas… Foi uma lição para toda a vida que, infelizmente, me ajudou a ser muito mais racional que emocional. (continua)

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