O círculo da vida (I/III)

Eu sempre fui um cara solitário. Faz parte da minha herança paterna, faz parte da minha infância, faz parte da minha juventude, é uma característica que eu próprio imprimi à minha personalidade para conseguir sobreviver à crônica timidez em que vivi até os 18/20 anos, sempre na defensiva e sozinho, mesmo que tivesse um monte de gente em volta.

Meu pai era um cara solitário que se adaptou à vida de seu tempo – marido, pai, profissional – mas acho que só se sentia realizado mesmo no mundo literário, fuçando livrarias e sebos  e lendo livros de filosofia, psicologia, religião, política, romances e o diabo a quatro…! Se vivesse nos tempos de hoje, provavelmente estaria fazendo o que eu faço: com a família criada, aposentado, solitário e com a visão comprometida, passaria a maior parte do seu tempo escrevendo… e num computador com monitor de 32 polegadas, ou mais! (a visão dele era ainda pior que a minha!)

Provavelmente, o caráter paterno se fundiu com o desejo materno: como meu pai achava que uma família tinha que ser constituída de acordo com suas possibilidades materiais e, no caso da dele, dois filhos bastavam,  após ter um filho homem, meu irmão mais velho, minha mãe, quatro anos depois e só na base da tabela, pensou ter gerado uma filha mulher… e se preparou para isto, com roupinhas, fraldas e brinquedos femininos. Nasci eu, com pinto!

Não sei se o desejo materno ao longo dos 09 meses de gravidez tem, cientificamente, influência no feto… Procurei ler muita coisa sobre isto, livros de psicologia, teorias exotéricas, estudos biológicos… mas sempre me deparo com um fato concreto: eu tinha todas as condições para me tornar um homossexual reprimido – pai e irmão mais velho machistas, mãe super protetora, timidez, medo do mundo em volta – mas me tornei apenas um tímido solitário, alguém que olha o mundo em volta e, como não gosta do que vê, prefere adaptar-se sem questionamentos para não ter cobranças, problemas ou castigos…

A primeira infância foi muita solitária: poucos anos no interior de Minas, convivendo com primas e primos e a mudança para Belo Horizonte, a vida num hotel, só eu e meus pais, já que meu irmão mais velho ficara para concluir o grupo escolar. Durante algum tempo, só tive um amigo: Carlos Alberto, o gordo filho único da dona do hotel, que descia comigo e minha mãe para a Praça da Estação, em Belo Horizonte, para andar de velocípede.

(Parêntesis constrangedor: Carlos Alberto continuou meu amigo durante a juventude, incorporando-se à turma do Mantiqueira, que ficava a dois quarteirões do Hotel Icaray. Não participava do time de futebol de salão – era gordo – mas gostava das brincadeiras no parque e, motivo do constrangimento, aprendeu a fumar comigo e morreu de enfisema pulmonar aos 65 anos. Me lembro até hoje da primeira vez: puxou a fumaça do cigarro e falou para dentro a palavra C.* e tossiu desesperadamente…! Mas aprendeu… e fumou durante 50 anos!))

Um tempo depois mudamos para o apartamento próprio, na Rua dos Tupinambás. Formou-se a turma do Mantiqueira (o nome do edifício), que não tinha qualquer possibilidade de enfrentar as “turmas” de outros edifícios e bairros da Beagá daquela época. Eu, particularmente, não tinha condições físicas de enfrentar qualquer um dos meus amigos de turma… eu não sabia brigar e detestava violência! E, para ser respeitado e não ser vítima de violências idiotas, me esforcei para ser o ‘guru’ da turma, o ‘Professor’, o cara que sabia tudo e agia com a cabeça e não com o coração ou o pinto!

Deu certo. Os amigos me procuravam para conselhos, a amada que não dava bola, a mãe que enchia o saco (tinha um cuja mãe exigia que qualquer amigo que fosse à sua casa tinha que estar de banho tomado e precisava deixar o sapato na entrada… para não sujar a casa!), mas a posição de “conselheiro” não me permitia dizer que eu também tinha problemas, que eu também precisava de um ombro amigo…

Os livros de meu pai foram meus conselheiros. E a leitura é um ato solitário. Você vibra, você se entristece, você fica p..o* com as voltas e reviravoltas da história que você está lendo e, seja qual for o sentimento, ele é solitário. Dificilmente, você consegue partilha-lo com alguém, seja pai, mãe, irmão, esposa, amigo ou amiga. (continua)

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