Eu estou cansado… (II/III)

O governo Geisel continuava sendo uma ditadura militar, mas tinha um forte viés nacionalista que balançava o coração de jovens, como eu, que gritaram muitos Yankees, go home! e batia com nossa visão de país: o Brasil dispunha de todas as condições de ser uma grande Nação, bastava apoiar algumas premissas… Energia nuclear, Petrobrás, preservação da Amazônia, Proálcool, por exemplos… Ou abastecimento alimentar! Ou seja: mesmo quem tinha motivos de sobra para  lutar contra a ditadura, gostou do novo enfoque da ‘Revolução de 64’: não o Brasil do ‘Ame-o ou Deixe-o”, mas o Brasil do ‘Nós Podemos”, muito antes dos marqueteiros do Obama criarem o ‘Yes! We can…’

Tantos anos depois, quando os arquivos americanos foram oficialmente tornados públicos, eu descobri que Ernesto Geisel era tão ditador quanto todos os generais que dominaram o país entre 1964 e 1985… Descobrir isto só agora não é uma desculpa para justificar minha participação em um governo ditatorial… É uma tentativa, apenas, de alertar as novas gerações que uma das coisas mais fáceis do mundo é manipular opinião.  Naquela época, bastava a censura, a publicidade oficial e o apoio da Globo… hoje, o processo é mais tecnocrático, com pitadas de psicologia comportamental…

A ditadura ainda durou mais um governo, João Batista Figueiredo, o homem que preferia cavalos a gente… E, mudando o governo, mudou a direção da empresa, mas eu continuei por lá, agora meio escanteado por um coronel da reserva que não entendia absolutamente nada de abastecimento! E detestava democracia! Me lembro de uma vez que começaram a falar de problemas num entreposto de pesca gerido pela empesa, e a inspetoria descobriu que havia, realmente, mutretas mil que beneficiavam um determinado político.  O coronel presidente ficou preocupado e me pediu para conversar com os jornalistas da área (naquela época, agropecuária tinha setoristas, repórteres que cobriam apenas esta área) para evitar matérias “negativas” para “nossa querida” empresa… Eu expliquei que conversar não ia adiantar nada. Ele precisava dar uma entrevista explicando o que acontecera na representação regional da empresa , o que a inspetoria tinha descoberto e o que ele e a diretoria tinham feito em relação às mutretas descobertas.

Ele me olhou com raiva, como se eu estivesse colocando-o na parede, e disse que não podia fazer isto porque ia ‘desmoralizar’ a política do governo e insistiu para que eu ‘conversasse com meus coleguinhas de imprensa…’, afinal, eu era contratado pela empresa para fazer isto, “defendê-la junto à opinião pública.” Um diretor, presente à conversa, aconselhou-o: “Presidente, a imprensa de lá já está em cima do caso… Conversar com os setoristas daqui não vai adiantar não! Eu conheço a turma toda, o Leonardo é amigo de todos, mas eles não vão ‘pedir’ ao pessoal de lá para ‘abafar’ uma situação que já vazou…” Ele pensou um pouco, andou pela sala e ordenou, impositivo: “Está bem! Convoque seus amigos… Eu falo com eles!”

Consegui agendar a entrevista para a tarde do dia seguinte: O Globo, Estadão, Folha, Jornal do Brasil, Correio Braziliense, Jornal de Brasília… evitei a televisão porque ele era péssimo para falar em público. O presidente recebeu a todos com cortesia, falou um pouco sobre a importância da imprensa para levar a verdade ao povo brasileiro e leu uma nota, que eu não tinha escrito, em que dizia, simplesmente, que a inspetoria da empresa, após receber denúncias de irregularidades no entreposto, havia feito uma varredura em todos os procedimentos operacionais da Unidade, constatando que apenas parte das denúncias era verdadeira, não todas, e que a diretoria de Operações já tinha tomado todas as providências para sanar as irregularidades e instaurado processo administrativo para apurar as responsabilidades e os possíveis culpados.

Explicou que aquela Nota de Esclarecimento, que ele esperava que fosse publicada na íntegra, ia ser entregue pela secretária, agradeceu a presença de todos, levantou-se, abriu a porta do gabinete e esperou a saída dos repórteres. Cristina, do Jornal do Brasil, levantou a mão e disse: “Presidente, mas…” Ele interrompeu e, militarmente, indicou: “Nada de perguntas, senhorita… O que a empresa tem a dizer está nesta Nota que acabo de ler. Passem muito bem!”

A área de comunicação da empresa, então, praticamente fechou enquanto ele foi presidente. Oficialmente, a gente estava lá trabalhando: escrevendo ‘releases’ (matérias favoráveis à empresa), que às vezes eram aproveitadas pelos jornais regionais, mandando mensagens de felicitações a funcionários da Casa, a políticos, a coronéis e generais, fotografando operações especiais determinadas pelo Governo Central… Mas, na maior parte do tempo, o que a gente fazia mesmo era jogar batalha naval…!

Como naquela época a abertura lenta, gradual e segura ainda não tinha começado, a luta permanecia clandestina, inclusive para gente famosa como Chico Buarque: junto com um grupo de petistas da área de engenharia, na maior parte do tempo ocioso (por imposição do presidente), eu produzia textos, documentos, manifestos denunciando o desrespeito a direitos trabalhistas, alguns desvios de condutas em algumas Unidades, o desvirtuamento de algumas funções da empresa. (continua)

 

 

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