Cannabis sativa (II)

E aqui a gente entra noutro ponto de debate do programa: a violência provocada pelas drogas, pelo crime organizado ou não, em torno da comercialização destes produtos. Isto porque no Uruguai, por exemplo, desde a legalização da maconha, houve queda de 40% nos crimes relacionados ao narcotráfico. Mas, é óbvio, não é só a maconha que alimenta o narcotráfico! Assim como cheirar cocaína era o ‘must’ da alta sociedade na década de 60 (quem leu Paulo Francis sabe bem disto), fumar crack é a onda da baixa sociedade de hoje. E o narcotráfico é o dono de todas estas ‘paradas…’

Mas há um fato estatístico que deveria chamar a atenção das autoridades em relação a isto: dados da Polícia Federal indicam que, em 2017, foram apreendidas 324 toneladas de maconha… e 45 toneladas de cocaína, maiores volumes apreendidos nos últimos 22 anos! Numa análise simplória, a maconha tem uma distribuição quase 08 vezes maior no mercado que a cocaína. E sua descriminalização, provavelmente, reduziria (e muito!), o poder que os reais donos do narcotráfico exercem sobre o país hoje (alguém acredita, realmente, que Fernandinho Beira Mar, Marcola, Nem ou Rogério 157 são os poderosos do narcotráfico, sabendo que um helicóptero de um senador foi apreendido com 400 kg de pasta-base da cocaína e nada aconteceu com todos os envolvidos?).

Mas, há outra questão, alertada por MV Bill: o narcotráfico é o principal responsável pelo comércio e porte clandestinos de armas no Brasil, justamente para garantir o domínio das facções por seus respectivos territórios e, paralelamente, para executar outros crimes Descriminalizando o produto mais movimentado por ele, exatamente a maconha, em que estas armas passariam a ser usadas?

Enfim, está aí um tema que merecia um amplo debate da sociedade, debate este que deveria ser proposto pelo Executivo e conduzido pelo Legislativo brasileiro, com intensa participação do Judiciário. Afinal de contas, parte da situação caótica de hoje tem a ver com a Justiça… A última Lei de Drogas aprovada no Brasil em 2006 (Lei 11.343) e saudada como um avanço no combate ao narcotráfico, implicou, na realidade, num agravamento dos problemas causados pelas drogas no país…

Explico: esta lei introduziu a distinção entre usuário e traficante. Enquanto a posse da droga para uso pessoal é considerada um delito de pequeno potencial ofensivo, cuja pena é alternativa à prisão, tal como advertência, prestação de serviços comunitários ou obrigação de cumprir medidas educativas, o tráfico de drogas é fortemente penalizado, com penas de prisão variando entre 05 e 15 anos. Só que a lei não determina que quantidade de droga de posse de uma pessoa é para consumo próprio ou para tráfico. O que explica, à luz da lei, mas não justifica porque o filho de uma desembargadora do Mato Grosso do Sul, membro de uma quadrilha de traficantes da região, preso com 129,9 kg de maconha, 199 munições calibre 7.62 e 71 munições calibre 9 milímetros, armamento de uso restrito das Forças Armadas, é mandado, por outro desembargador, para uma clínica de repouso e recuperação, e uma mãe amamentando seu filho, presa quando levava 8,5 gramas de maconha para seu marido numa penitenciária, é mandada para a prisão junto com o filho.

Esta lei, obviamente, tinha uma justificativa bem compreensível, do ponto de vista dos direitos humanos: separar o joio do trigo! Traficante é bandido, consumidor é vítima! Mas, o conhecido ‘jeitinho’ brasileiro, que a elite e seus prepostos políticos chamam de ‘acordos’  da democracia, aprovou a Lei 11.343 sem determinar a quantidade de droga que define quem é bandido e quem é vítima… Ou seja, quem determina isto é o guarda da esquina! Ou o juiz de plantão! Permitam-me a ironia: viva a democracia brasileira! (especialmente quando se contrapõe um senador branco, empresário e fazendeiro, cartola de um time de expressão nacional – o meu time, por sinal – amigo íntimo do neto de um ícone da redemocratização do país e líder da oposição e uma preta, moradora da periferia pobre de São Paulo, cujo marido está preso numa penitenciária, por tráfico de droga…!)

Enfim… ao contrário do que esperavam os defensores dos direitos humanos, esta lei superpovoou as prisões brasileiras. Nós temos, hoje, a terceira população carcerária do mundo. Perdemos, apenas, para Estados Unidos e Rússia… E não somos potências mundiais, como Estados Unidos e Rússia…! A imensa maioria dos prisioneiros é resultante de porte de drogas e, pelo menos 40% está aguardando julgamento, ou seja, não têm culpa formada pela Justiça, porque os juízes, dizem, estão sobrecarregados de processos, não dando tempo de julgá-los. Mas, em nenhum momento, pensam em reduzir as férias forenses ou ampliar o orçamento judicial para ter mais varas, mais juízes e melhor distribuição das causas que demandam a Justiça… Ao contrário, pressionam por melhores salários, por incorporação de penduricalhos aos salários existentes, pela manutenção dos privilégios de classe… F…*-se o resto…!

Muita gente hoje, inclusive o ex-presidente e guru dos conservadores brasileiros Fernando Henrique Cardoso e o global ministro do STF Luis Roberto Barroso, defende a liberação da maconha como forma de reduzir ou, pelo menos, estancar a crescente violência que aterroriza o país, uma violência que não consegue ser combatida nem pelas forças armadas brasileiras, como bem demonstra a frustrante intervenção militar feita na segurança do Rio de Janeiro.

Não se pode, porém, desconhecer o que ainda pensa a grande maioria da população brasileira. Recente pesquisa conduzida pelo Paraná Pesquisas apontou que 70,9% da população é contra a legalização da maconha e 84,3% contra a da cocaína. Evidentemente, este expressivo número de brasileiros ainda carrega, consciente e inconscientemente, décadas de informação negativa da maconha e, mesmo pessoas bem instruídas, com acesso, hoje, a informações contrárias, que indicam e comprovam as propriedades medicinais da cannabis sativa – uma das soluções mais eficazes no combate à epilepsia, por exemplo – permanecem firmes na total restrição a qualquer mudança na legislação proibitiva de drogas no Brasil. Boa parte não gosta nem de discutir o assunto publicamente…

Isto fica evidente nas reuniões sociais, todo mundo virando copos e mais copos de cerveja, bebericando uísque, vodca ou saboreando seu vinho argentino ou italiano, quando você, ao comentar mais uma guerra entre gangues nos morros do Rio, sugere como possível solução a descriminalização da maconha… O mínimo que você escuta, de volta, é “Olhaí o maconheiro querendo voltar aos tempos de faculdade!”

Eu tenho convicção que a imensa maioria das pessoas hoje na faixa dos 60 e 70 anos como eu, de classes média e alta, que cursou faculdade nos anos 60 e 70, fumou baseados e até experimentou drogas mais pesadas, ao som d’Os Mutantes. Como eu disse no início, era, também, uma forma de rebeldia, uma característica primordial da juventude. E a maioria destas pessoas hoje demonstra uma discutível necessidade de esconder isto, como se o fato de ter sido jovem e rebelde – uma das recordações mais felizes para qualquer idoso – fosse perturbar as sólidas convicções conservadoras que eles têm atualmente.

Isto me lembrou a reação de um amigo querido, numa reunião festiva na minha casa, depois de nossa volta da praia trazendo os dois cachimbinhos comprados de Bigi. Depois de contar a história do hippie para os presentes,  peguei um dos cachimbinhos e, brincando, disse para ele: “Trouxe este de presente para você…” Quase apanhei!

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