De Hipócrates a hipócritas

O grego Hipócrates não foi o primeiro médico do mundo, mas é considerado o Pai da Medicina, talvez porque ele tenha deixado escrita uma série de descrições clínicas de como diagnosticar doenças como a malária, papeira, pneumonia e tuberculose. Dizia ele que muitas epidemias derivavam de fatores climáticos, raciais, dietéticos e do meio onde as pessoas viviam. Seus escritos sobre anatomia contêm descrições claras tanto sobre instrumentos de dissecação quanto sobre procedimentos práticos.
Além disso, Hipócrates, que morreu em 360 Antes de
Cristo, também deixou escrito um juramento que é válido até hoje, juramento_hipocrates 2
devidamente adaptado aos tempos atuais, pois foi
ratificado pela Declaração de Genebra de 1948 e atualizado
em 1983, originando versões aplicadas em vários países e
Faculdades de Medicina, juradas pelos médicos na hora de
receberem seus diplomas. Da versão mais aplicada em todo
o mundo, destaco dois postulados:

1. A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação; e

2. Não permitirei que considerações de religião, nacionalidade, raça, partido político, ou posição social se interponham entre o meu dever e o meu Doente. (grifos meus)

Indiquei estes dois postulados em razão do seguinte: uma ex-secretária de Políticas para as Mulheres, Ariane Leitão, denunciou a pediatra de seu filho de um ano, Maria Dolores Bressan, ao Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul/CREMERS, por esta ter lhe encaminhado mensagem nos seguintes termos: “…Tu e teu esposo fazem parte do Partido dos Trabalhadores (ele do Psol) e depois de todos os acontecimentos da semana e culminando com o de ontem, onde houve escárnio e deboche do Lula ao vivo e a cores, para todos verem (representante maior do teu partido), eu estou sem a mínima condição de ser Pediatra do teu filho”.
Eu sou filho de médico, um médico que  dedicou mais de 60 de seus 85 anos de vida a curar e salvar vidas, parte deles como médico e diretor de leprosários, numa época em que leproso era segregado da família em colônias, onde o médico e sua família também residiam.

leprosário de Bambuí, hoje em ruínas

 Leprosário de Bambuí, hoje em ruínas

Aliás, eu nasci num leprosário, num parto feito por ele mesmo, porque não deu tempo de levar minha mãe para o hospital da cidade, que ficava distante da colônia.
Lembro nitidamente, eu ainda garoto, acordando de madrugada com gente desesperada batendo na porta de casa… e meu pai saindo para socorrer alguém na roça, ou eu sendo privado da presença dele numa festinha do grupo escolar, porque seus doentes tinham prioridade absoluta.

Numa centena de cadernetas dele, que eu guardo, há muitas e muitas histórias de suas lutas para salvar vidas, iguais a de tantos e tantos médicos que ainda existem por este Brasil adentro, felizmente: a história do boiadeiro que foi chifrado na coxa numa fazenda no sul de Minas, cuja perna foi amputada por meu pai, usando cachaça como anestésico; ou a história da vez que ele, diretor de leprosário, foi chamado às pressas à cidade, Bambuí, minha terra aliás, para fazer um parto extremamente difícil, e fez o primeiro parto de quadrigêmeos de Minas Gerais.
Por isso, meu espanto com a frieza da doutora, descartando seu doente de um ano, de quem era a pediatra, via mensagem, por causa das convicções políticas dos pais. E mais boquiaberto fiquei, ainda, com as declarações posteriores do presidente do Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Sul, Paulo de Argollo Mendes, justificando a atitude da médica. São palavras dele, literalmente: (ela) “é absolutamente ética. O código de ética médico tem um artigo que estabelece como deve se dar a relação entre médico e paciente. Tem coisas muito claras. Por exemplo, se é uma urgência ou se tu és o único médico da cidade, tu atendes e ponto. Não tem condicionais, é a tua obrigação. Tu não és o único médico da cidade e o paciente tem a possibilidade de escolher outros profissionais, daí tu tens que ser honesto, tem que ser leal com o teu paciente. Se tem alguma coisa que te incomoda e que tu achas que vai prejudicar a tua relação com o teu paciente, se tu não vais se sentir confortável, se não vai ser prazeroso para ti atender aquela pessoa, tu deves dizer para ela francamente: olha, prefiro que tu procures um colega. (…)”
Minha vontade é dizer, gaùchamente: “Tu és uma besta, doutor! piada de burro 1
Nem tu, nem tua sindicalizada são médicos… vocês praticam, apenas, o comércio da saúde,
exatamente, aliás, no que foi transformada a medicina no Brasil de hoje (ou seria no mundo?)
Apesar dos milhares de médicos deste país, que exercem sua profissão com consciência e dignidade (incluindo os cubanos e estrangeiros do Mais Médicos), é fato que associações, conselhos e sindicatos, com as honrosas exceções de sempre, alteraram os dois postulados que destaquei lá em cima, mas ainda não conseguiram inseri-los no juramento:
1. A Saúde do meu Doente será a minha segunda preocupação; a primeira será sempre comigo mesmo; e
2. Não permitirei que considerações de religião, nacionalidade, raça, partido político, ou posição social se interponham entre o meu dever e o meu Doente, salvo se qualquer destas considerações interfira no meu próprio bem estar. (grifos meus)

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