Eu e a música (III)

Minha história com a música neste blog terminava ali, ouvindo o Noturno de Chopin. Aí apareceu a Paraíso do Tuiuti no sambódromo e eu percebi que faltava um capítulo nesta história, minha relação com a mais expressiva manifestação cultural brasileira, quando até mesmo a insuperável separação de classes que perdura no país, não impede, nem implode, a alegria fundamental da alma de nossa gente.

Eu já brinquei muitos carnavais!  E já escrevi sobre isto aqui (De festas e farras I e II). Mas nunca curti, com aquela emoção que arrepia os pelos dos braços, os desfiles das Escolas de Samba. Apesar de ler e gostar muito dos livros e lições do antropólogo Darcy Ribeiro (o inventor do Sambódromo  do Rio), eu sempre achei aquela explosão de cores, fantasias, bundas e peitos de fora, acompanhada por um batuque igual, independentemente da Escola que estava desfilando, como uma grande campanha publicitária de venda do Brasil, de seus prazeres, de suas mulheres (e homens), das facilidades em se cometer ‘pecados’ sem qualquer punição, para os homens (e mulheres) ricos dos países de primeiro mundo. Afinal de contas, não existe pecado ao sul do Equador!

A partir de um certo tempo, então, quando a Globo assumiu o controle dos desfiles na Marquês de Sapucaí, aquilo que sempre foi o fundamento do Carnaval, o protesto, a alegria popular, a vontade particular de dizer ou botar para fora o que o dia-a-dia normal não permitia, passou a ser uma coisa edulcorada, o padrão Globo de qualidade, em que a emoção foi substituída pela boa apresentação frente às câmeras…

Neste texto anterior sobre farras e festas na minha vida, eu lembro meu primeiro carnaval ainda menino no interior de Minas, meu carnaval baiano e meus carnavais em família, aproveitando as viagens de férias ou na Chalueo ou na pequena cidade goiana em que a chácara ficava.

Nem citei o desfile de Escolas de Samba pelos sambódromos do Rio ou de São Paulo, pois eram meramente acompanhados quando a festança em que eu estava, na chácara ou em praias, exigia um descanso reparador. E, cá entre nós, acompanhar o desfile de uma escola de samba pela TV Globo é excruciante e sem sobressaltos. O padrão Globo de qualidade não admite atalhos à linha condutora traçada muito antes do Carnaval começar.

Neste contexto, a apresentação da Paraíso do Tuiuti no sambódromo é um marco! A Globo não sabia o que ela ia levar para a avenida? A Globo não tem mais o domínio das Escolas de Samba do Rio e de São Paulo? Por isso que ela está dando tanto destaque aos blocos que, desvinculados de qualquer coisa ou de qualquer patrocínio financeiro vindo de cima, voltam a transformar o carnaval em um festa popular? Honestamente, espero que eles resistam à pressão econômica que vem junto com a Globo!

Certamente, na situação que o país vive hoje, o desfile da Paraíso do Tuiuti representa um momento único, histórico. A escravidão  iniciada na descoberta do país e que permanece até hoje, mais de 500 anos depois, mostrada de forma clara e sem subterfúgios e artisticamente plástica, de forma que as explicações, muitas vezes embasbacadas, dos apresentadores da Globo eram inteiramente dispensáveis, ficou escancarada para o povo que assistia, nas arquibancadas e em casa. Os primeiros aplaudiram, gritaram e cantaram o samba enredo, os de casa, acho, foram dormir pensando um pouco mais na vida que levam…

As manifestações que pipocaram imediatamente nas redes sociais e na grande imprensa no dia seguinte evidenciam o choque que as classes abastadas e instruídas tiveram com a ousadia apresentada pela Escola de São Cristóvão, bairro no centro do Rio. Numa postagem que recebi num dos grupos de que participo, teve um veemente frequentador anti lulista que foi claro e direto: “Quem esta negrada pensa que é para me chamar de manipulado? Eu quero que todos se f….* de verde amarelo!”

Como diriam os jovens, o fato é que a Paraíso do Tuiuti mitou. A Beija Flor de Nilópolis cantou a decepção com o país de modo politicamente correto, uma ideia do filho do “dono” da Escola, curiosamente o politicamente incorreto bicheiro Anísio Abrahão, e ganhou na votação dos jurados, como queria a Globo mas, bem antes da apuração, o povão já tinha eleito a verdadeira vencedora. Apesar da Beija Flor não fazer feio e ter um bom samba-enredo.

O que impressiona é que, depois de anos de envernizamento de uma autêntica festa popular brasileira, buscando transformá-la num evento de alta rentabilidade financeira (para os mesmos poucos de sempre), reservando aos populares, pobres trabalhadores de morros e periferias do Rio, apenas a alegria de sambar pela avenida carregando plumas, paetês e miçangas falsamente luxuosas e artistas e celebridades, a Globo foi derrotada por uma Escola sem história vitoriosa, recém chegada ao grupo especial e, talvez por isto mesmo, ainda não seduzida pelo poderio global ou econômico (que é a mesma coisa).

Para quem se interessar em conhecer um pouco mais a Escola, basta um clique na Wikipedia que a gente fica sabendo que ela foi fundada em 1954, juntando duas agremiações existentes do Morro do Tuiuti, uma favela de São Cristóvão. Foi 1º lugar do Grupo 3 em 1968 e 3º no Grupo 2 no ano seguinte. No início dos anos 80, ela ganhou o título do Grupo A, ficando em 2º lugar em 2000, e entrando no Grupo Especial. Ficou entrando e saindo do grupo de acesso, grupos A e B até que em 2017, em razão daqueles acidentes com carros alegóricos atropelando gente nas arquibancadas, com uma morte inclusive, a Tuiuti, que ficara em 12° lugar do Grupo Especial, não foi rebaixada mais uma vez.

Então, ela deu a volta por cima e, repetindo uma sina que o povão parece não estar gostando mais, virou campeã moral da Sapucaí de 2018. Possivelmente, vamos confirmar esta revolta latente no desfile das vencedoras hoje. Tudo é festa, claro, cada Escola com sua torcida presente, cantando, gritando, aplaudindo e dançando ao som do samba enredo… mas acho que todas as arquibancadas cantarão, gritarão, aplaudirão e dançarão quando a Paraíso do Tuiuti passar…

Para quem não tiver tempo de ver este desfile (a Tuiuti entra na Sapucaí as 1:35 hs da manhã), vai aqui a transmissão que a Globo foi obrigada a mostrar (contrariando uma determinação imperial do falecido papai Roberto Marinho: o importante é aquilo que a Globo não mostra ou diz). Observem a beleza plástica e o balé impactante da Comissão de Frente, percebam a mensagem clara da escravidão moderna nas alas de trabalhadores de confecções e do campo e sintam o grito de revolta latente que ecoa da ala de patos amarelos e do carro do Vampirão, com aquelas grandes mãos manipuladoras dos camisas amarelas, úteis fantoches dos verdadeiros bandidos que governam o Brasil.

 

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