Eu e a música (II)

Aí me casei, vieram as filhas e fui morar em Brasília. O trabalho era prazeroso, mas estafante e sem tempo para muita coisa pessoal, já que eu vivia viajando Brasil adentro e o pouco tempo passado em casa era dedicado à mulher e às filhas. Música só as ouvidas pelas filhas e um pouco de MPB nas poucas reuniões sociais em casa dos poucos amigos ou lá em casa mesmo. Música clássica só muito raramente quando transitava de carro sozinho: havia uma rádio em Brasília, a Super Rádio Brasília FM (ainda há), do falecido Mário Garófalo, radialista pioneiro da cidade, cuja programação incluía músicas orquestradas, óperas, jazz, músicas clássicas, MPB e temas de cinema.  Ou, então, quando ia tomar um chopinho no Conjunto Nacional, após o expediente: a rádio tinha um programa ao vivo lá, que começava às 18 horas.

Por contingências da vida, me separei, as filhas ainda meninas foram morar longe e eu desandei por uns tempos. Como já contei aqui, fui morar numa casa no Lago Norte, que virou ponto de encontro de amigos e amigas, colegas de trabalho e amigos e amigas dos amigos e amigas e dos colegas de trabalho. Muitas festas, então, com muita música, para todos os gostos, desde que fossem dançantes e/ou barulhentas (os vizinhos também participavam).  Acabei até gostando de rock…!0TU

A esbórnia cansou. Casei de novo e, desta vez, com uma mulher apaixonada por dança… e por músicas que mexessem com toda a alma, dos pés aligeirados por todo o espaço disponível até o rosto transbordante de alegria… Dava gosto de ver! E tome de dance music, rock and roll, samba, baião, axe´e… forró! Bem, a esta altura da vida, eu já não tinha mais medo das meninas, bem como aprendera a dançar razoavelmente, mas não havia a menor chance de balançar meu esqueleto pelo salão, como este  Jeferson forrozeiro aí de baixo.

Por mais boa vontade e esforço que minha mulher fizesse, eu não tinha estrutura emocional nem física para tanto, apesar de acompanha-la sempre em outros balancês, especialmente os menos agitados. E, para contrabalançar isto, já que nossas festanças aconteciam, quase sempre, na chácara que eu comprara numa pequena cidade de Goiás, introduzimos, nelas, o sertanejo goiano, música que começava a explodir nas rádios do país inteiro. Chitãozinho e Xororó, Leandro e Leonardo, Christian e Ralf e tantos outras duplas passaram a dominar o contexto musical da Chalueo (além do forró, é claro!).

Acabei por gostar, também, da moderna música sertaneja, o que comprova minha sensibilidade elástica…

Desde então, a tecnologia invadiu nossas vidas. Ninguém precisa mais de radiola ou vitrola, de fita cassete ou rádio FM para ouvir o que deseja, a qualquer hora ou em qualquer lugar… Um pendrive, um celular e a criançada com menos de 50 – os mais antigos como eu têm certa dificuldade em entender esta novilingua internética – ‘baixa’ as músicas que quer. Uma pena que, infelizmente, as músicas de hoje, pelo menos para a minha sensibilidade, mesmo elástica, involuíram…

Acho que faz parte do choque de gerações, as gerações posteriores renegarem o gosto, a postura, a maneira de ser e viver das gerações anteriores. Na minha juventude, quando a chamada MPB, em especial a bossa nova, tornou-se uma febre, era comum para nós, jovens, desprezar, considerar ridículas, uma porcaria mesmo, as músicas ouvidas e dançadas por nossos pais, como o bolero, o foxtrot, o tango, a valsinha, a balada melosa. Angela Maria, Cauby Peixoto, Altemar Dutra, Elizete Cardoso, Carlos Gardel, Peppino di Capri, Domenico Modugno, Neil Sedaka, Tom Jones, Henry Mancini, Orquestra Tabajara deveriam ser mumificados e proibidos de cantar e tocar pelo Brasil…

Provavelmente, este mesmo processo está acontecendo agora: uma boa parte dos estilos musicais que alegraram minha vida está sendo desprezada, considerada ridícula, uma porcaria mesmo, pelas gerações mais jovens. Com uma diferença brutal: enquanto a minha geração substituiu música por música, sons que sensibilizavam a alma tanto pelos acordes quanto pelas letras, a geração de hoje substituiu música por barulho – e quanto mais alto, melhor – às vezes com letras que não dizem nada, a não ser a exposição de desejos incontidos que precisam ser realizados ali mesmo, no meio do salão… (Que me perdoem os jovens, mas querem coisa mais ridícula que a tal de Na boquinha da garrafa, do É o Tchan?)

Há muitas exceções, claro, mas, no geral, enquanto boa parte da juventude de classe baixa, vivendo em favelas e na periferia das grandes cidades, é atraída para o funk, onde o tráfico de drogas tem intensa penetração, boa parte da juventude de classe média se desbunda nas festas rave, onde o baticum desenfreado, a droga e o sexo livre imperam… Nada contra o último, que faz parte das liberdades conquistadas pela juventude, mas até os mais jovens hão de convir que num ambiente desses, com os desejos a flor da pele, prevenir-se deixa de ser fundamental…!

A realidade é que estas festas rave tornam-se uma dor de cabeça para quem mora numa área rural como eu. Uma coisa é você fazer festas particulares, para amigos e parentes, em comemoração a alguma coisa… Outra é transformar uma chácara no meio do mato em um local aberto a quem quiser pagar 50, 100, 200 reais para zonear de sexta a domingo! Além do barulho infernal para boa parte dos vizinhos até duas ou três ruas distantes, há o monte de bêbados e drogados que saem pela principal via de acesso à região para ir embora e provoca acidentes, alguns fatais.

Minha sorte é que a única chácara nas minhas proximidades que realizava festas rave, após uma denúncia coletiva dos vizinhos, que descobriu que o promotor das raves tinha envolvimento com traficância de drogas, parou de realiza-las. Com isso, voltei a ficar dono dos meus ouvidos e, nas madrugadas em que o sono não vem, voltei a ouvir minhas músicas clássicas.

A atual solidão em que vivo tem um imenso rol de desvantagens… mas tem uma vantagem única: você volta a ser você mesmo, com todos os defeitos e qualidades naturais de um ser humano comum. Durante muitos e muitos anos, quase meio século, eu nunca ouvi música clássica no rádio do carro quando transitava por ruas ou avenidas ou pelas rodovias deste país, se estivesse acompanhado por esposa ou filhas… Se eu sintonizasse uma rádio ou colocasse uma fita cassete ou CD  do meu gosto, logo vinha a reclamação: “Pô! Não tem música melhor, não?”

Não tenho que me preocupar  mais com isto. Solteiro de novo e com as filhas morando longe, sintonizo a música que quero no rádio do carro ou coloco meus velhos CDs conservados na casa vazia em que vivo. Compensa? Acho que não… mas voltei a ouvir minhas músicas preferidas!

 

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