A crise permanece longe (I)

Eu moro, como já disse algumas vezes, numa área rural. São chácaras com, no mínimo, 20 mil m² – há exceções, claro, legalmente proibidas, já que se trata de área de proteção ambiental, mas fiscalizar e tomar providências contra, quem há de? – onde a comunidade dispõe de alguns pontos de encontro, bem poucos aliás, vez que há uma natural diferença de classes: usuários/donos de chácaras, mesmo que já morando há tempos na região, não costumam frequentar os vários botecos montados nas ruas internas, lugar preferido por caseiros e prestadores de serviços.

Ou seja: além das reuniões na associação patronal, quando convocada uma assembleia, estes, quando moradores, costumam trombar na mercearia, nos mercados, nos fornecedores de comida, na farmácia, na única loja de material de construção e no empório, polo de comercialização da região, administrado pela associação, que funciona apenas nos fins de semana. E, claro, em festas tradicionais, promovidas pela escola, pelas igrejas, católica ou evangélicas, e pela própria associação, nas quais a confraternização é geral, sem distinção de classe, cor ou gênero.

Mais recentemente, com o advento das redes sociais, especialmente do Whats’App, formaram-se grupos com interesses afins e, com isso, aumentou-se o conhecimento mútuo entre os moradores, mesmo que isto não implique em amizade ou num convívio constante. Alguns grupos criaram formas de se aproximarem pessoalmente e outros, sem qualquer discriminação, unem chacareiros, caseiros e prestadores de serviços, o que, sem dúvida, é positivo para o microcosmo de um país que se pretende democrático e plural, mesmo estando numa fase em que isto parece utópico e perigoso.

Apesar deste avanço nas relações humanas, a região continua pobre de pontos de encontro. O que é desalentador para um cara como eu que, divorciado e com as filhas morando longe, e com pretensões de virar escritor, sente necessidade de encontrar gente para discutir as últimas rapinadas da quadrilha planaltina ou as caneladas do prefake de São Paulo ou, mais importante no momento, sentir o que pensa um pioneiro, morador da região antes de ela ter iluminação elétrica, ou de um ocupante recente, que quer construir sua casa, mas é impedido pelos órgãos ambientais, enquanto a região não for regularizada (enquanto outros, mais antenados com o espírito do tempo, não estão nem aí para tais órgãos e constroem…).

Qual não foi minha satisfação pois, quando, andando pelo empório num domingo – o pastel de queijo do Zico é divino!  Ou, melhor: o pastel de queijo da mulher do Zico é divino, já que o Zico fica só batendo papo nos arredores, conquistando fregueses e, claro, recolhendo o dinheiro no final do dia – alguém bateu os dedos, de leve, no meu ombro, e disse:

— E aí, gente boa? Não quis ir apreciar os meus dotes? Dotôzim me disse que você ainda está de muda, mas não há coisa melhor pra sair da muda do que uma morena como eu… não acha?

Eu costumo ficar vermelho quando sou abordado inesperadamente, resquícios da minha timidez crônica, e, claro, não consigo dizer qualquer coisa, por mais estúpida que seja… Apenas olhei para trás e vi uma morena de cabelos muito pretos e lisos, olhos amendoados e lábios grossos achatados, muito semelhantes aos da Angelina Jolie (sexy p’ra dedéu, não é verdade?), me sorrindo como se me conhecesse há um tempão… e eu não tinha a menor ideia de quem era!

Zico, sempre atento à freguesia, se achegou e, piscando com o olho direito, disse:

— Doutor – como eu fui diretor da associação patronal e colaboro com ela permanentemente, todo mundo acha que eu sou doutor – esta é a Zú, uma das mais eficientes divulgadoras do empório.

Zú…!? O nome não me era estranho…! E, lentamente, me veio a figura do meu amigo doutor, de Dezinha e do Suingue Club, onde eu tinha estado há um mês atrás. Mas, eu não estivera com ou sequer vira Zú… Senti que fiquei mais vermelho ainda e, meio cabreiro, de baixo para cima, olhei para a morena como se fosse fazer uma pergunta… que ela antecipou:

— Dotôzim me mostrou você outro dia… lá no galpão, você estava numa mesa com uma senhora bem idosa e uma jovem morena, sua mãe e sua filha, acho… Ele disse que você era o escritor que tinha conversado horas a fio com Mãe Dezinha e que estava na muda e ficou chateado comigo quando eu disse que muda era babaquice e que eu sabia como mudar na hora!

Eu só consegui dizer uma coisa: “Aceita um pastel?” (o empório não admite bebida alcóolica no recinto). E me controlei o suficiente para convidá-la para se sentar – há mesinhas na área de alimentação do empório – que ela aceitou, o que me deu tempo suficiente para respirar e pensar que aquela era mais uma oportunidade que eu tinha para escrever mais alguma coisa sobre a vida daquelas mulheres, tão desprezadas e tão necessárias para o equilíbrio da vida….

— Desculpe-me – disse eu quando nos sentamos – mas hoje é domingo…

— Eu não estou lá – antecipou ela mais uma vez – porque o deputado que “comprou” minha companhia não aguentou a noite… Me disse ainda de madrugada que eu podia fazer qualquer coisa que quisesse porque ele tem um encontro com o presidente amanhã e precisava preparar o pedido de verba… Ou seja, ele transou um pouco, me pediu um tempo… estava roncando  profundamente quando saí. Foi bom pra mim, porque posso vir aqui e fazer compras… eu adoro fazer compras!”

— Posso estar enganado, mas você gosta desta vida, não é mesmo?

— É… eu gosto! Eu sei que Mãe Dezinha teve uma vida desgraçada… ela me contou! Eu sei que a maioria das minhas colegas, as do Clube, caíram na vida por sacanagens mil ou por falta de opções, mas eu não… eu gosto! (continua)

 

 

4 comentários em “A crise permanece longe (I)

    1. Os lábios da Angelina Jolie ao alcance da imaginação. Repetindo o que disse para Aline, aí em baixo: Felizes aqueles que conseguem passar para o papel tudo aquilo que imaginam… e são lidos!

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