Um lugar sem crise (I)

O escritor, o ambiente rural e a sacanagem

Ilustração: Eugênio Brito

Eu acho que já escrevi isto aqui:  eu moro numa chácara há 30 km do centro da capital. Encravada em meio a um parque e uma reserva biológica, toda a região é de proteção ambiental, uma área sob permanente, mas nem sempre rigorosa, vigilância de entidades públicas e privadas de preservação do meio ambiente. 

Com isso, seus moradores, especialmente os ocupantes das chácaras – todas as terras pertencem à União e, portanto, eu posso morar e trabalhar em minha chácara – o que faço – desde que pague uma taxa de ocupação e obedeça determinadas exigências estabelecidas nas legislações ambientais.

A imensa maioria dos ocupantes destas chácaras faz isto – alguns não, mas toda regra tem exceção, claro! Hoje, já há muita gente que, mesmo ainda trabalhando na cidade, mora na chácara, criando galinhas e patos, mantendo uma horta caseira, plantando algumas culturas, como milho, feijão e mandioca. Outro tanto usa as chácaras como lazer de fim de semana, o local ideal para o encontro da família e com os amigos, na churrascada/cervejada reparadora da semana cansativa.

Mas há aqueles, também, que fazem da chácara seu meio de sustento: a produção agrícola, de caráter familiar,  especialmente de orgânicos, está se expandindo bem, considerando a boa demanda da classe média abastada da capital. Outra atividade significativa na região é a criação de cavalos: no último levantamento feito, foram cadastrados mais de 500 equinos. Assim como as chácaras de repouso, de festas e de retiros religiosos.

Nesta última linha, há uma chácara em especial que sempre foi motivo de sussurros e sorrisos reservados entre os moradores bem postos na vida, para não ofender os ouvidos delicados e tementes a Deus de suas senhôras: um “puteiro” de alto nível, que, atualmente, atrai uma freguesia eclética e de várias partes do país por uma característica que ele adotou recentemente: especializou-se em suingue.

Durante meus primeiros anos na região, sempre ouvi falar nesta chácara, “um verdadeiro paraíso”, diziam senhores de cabelos brancos e barrigas estufadas nas reuniões da nossa associação. Mas, pelas expressões libidinosas com que descreviam o local, os quartos e as moças, comuns  em todos os “rendez-vous” que eu conheci, a chácara não passava disto, um “rendez-vous”, só que no meio do mato.

Eu já escrevi isto aqui: eu sempre fui um tímido crônico e preferia mergulhar em livros a caçar mulheres da vida pela zona de Belo Horizonte. Mas houve uma época na minha vida, ali pelos 35 anos, já separado da minha primeira mulher e com as filhas morando longe, em que eu viajava muito pelo Brasil. Ou seja, em três anos de solteirice e esbórnia, eu conheci praticamente todos os mais afamados “puteiros” das principais capitais brasileiras. Naquela época, não se falava em AIDS e, para falar a verdade, muitas vezes eu passava boa parte da noite conversando com uma ou outra “menina” ou com a gerente da casa.

As histórias se repetiam: meninas bonitas morando numa cidadezinha perdida do interior, sem perspectivas,  que eram abusadas por um tio, pelo namorado ou pelo próprio pai, e fugiam da desonra ou desgraça para “vencerem” na vida na capital. Usando o belo corpo e o rosto bonito, muitas conseguiam se aprumar na vida, tornando-se donas de lojas ou casando-se com alguém que não conhecia sua profissão ou que, conhecendo, não se importava e até gostava. Bruna Surfistinha não foi uma só!

E houve muitas outras em que a prostituição era uma coisa bem temporária: queriam fazer universidade, ter uma profissão, vida própria sem depender de marido, e sem condições de cursar faculdade pública, pela precariedade do ensino básico no interior, frequentavam boates de alto nível, onde se encontravam com executivos nacionais e estrangeiros, dali saindo para um programa nos hotéis de luxo. Havia uma boate em São Paulo, Scaramouche, onde a frequência era restritíssima: terceiranista de Medicina, quintanista de Direito, pós graduanda de Psicologia, que pretendia fazer Mestrado nos Estados Unidos… E havia uma em Curitiba, Quatro Bicos, em que só se permitia entrar meninas louras legítimas, o que, vamos e convenhamos, independentemente do preconceito brutal, era perfeitamente possível num Estado com forte presença alemã, polaca e italiana.

Passados 35 anos desta minha fase meio libertina, fui convidado por um companheiro de associação, pouco mais novo que eu, mas com bem mais tempo de divórcio, para “relembrar as delícias do paraíso!” Não me apeteceu a ideia e ponderei que meu tempo de esbórnia já passara, que eu me sentiria ridículo, careca, barrigudo e pelado, andando em meio a outros carecas, barrigudos e pelados e, pior, entre exuberantes mocinhas que, com certeza, tinham avôs que ficariam com a mesma expressão idiota que eu apresentaria então.

Ele insistiu, argumentou e, por fim, tentei botar um fim na insistência: “lá é um clube de suingue, cara… nunca vão deixar entrar dois homens juntos” . E ele foi incisivo: “você está ultrapassado mesmo, heim? Quem disse que num clube de suingue, homens não podem trocar de parceiros? Ou mulheres? Na vida, tudo evolui… até o comércio mais antigo do mundo!” E me deu um cheque mate: “você não diz que é um escritor?  O melhor lugar para escutar histórias fantásticas de vida é um puteiro, não sabia? Eu sou muito amigo da gerente e só a vida dela dá um livro…! Que tal? A gente vai durante a semana, que tem menos gente, e se você não se sentir à vontade, eu digo que você é escritor e garanto que Dezinha, a gerente, te faz companhia… Ela adora falar da vida dela e como chegou onde está. (continua)

 

8 comentários em “Um lugar sem crise (I)

  1. Grande Léo. Escrever é viajar na imaginação (nem sei se alguém já disse isso), mas é o melhor exercício mental do mundo. Parabéns pelo belo texto e que outros que estão no forno sejam divulgados. Uma longa viagem meu amigo.

    1. Obrigado, meu amigo irmão… A viagem está só começando. Já que não dirijo mais carros pelas estradas deste país, quem sabe conduzo gente pela imaginação desvairada até onde o sonho aguentar…!

  2. Estimado amigo Leo,
    Somente hoje visitei sua página. Li apenas um texto dos vários disponíveis, qual seja: um lugar sem crise(I). O achei muito instigante, principalmente pelo fato de que foi escrito com muita singeleza e sem pudor. Outra marca que também chamou minha atenção foi o português rebuscado, texto escrito com profundo respeito ao nosso vernáculo. Confesso que não tinha tinha a dimensão da sua capacidade e vocação de escritor. Lerei outros e, oportunamente, tecerei algum comentário. Grande abraço e até a próxima.
    Edeijavá

    1. Obrigado, Deja… Espero que continue lendo e comentando. Sua experiência política me ajudaria muito nos textos menos pessoais e mais voltados para esta luta política em que vivemos há tantos anos. Abç gde.

  3. Uai sô!!!, Um fato interessante desse “Paraiso”, que muita gente não sabe é que: o dono daquele “ponto” é fabricante e vendedor de linguiças…. isso mesmo…. linguiças. Abs

    1. Muito bom saber que é leitor do meu blog. Em todas as minhas andanças passadas
      pelas noites brasileiras, eu só conheci um dono destes “paraísos”: em Natal… e ele
      era deputado federal. Abç gde, Leo

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