Que tradição?

Eu acho o governo Temer golpista, usurpador da vontade popular e, acima de tudo, o mais expressivo exemplo do tipo de quadrilha que a elite econômica brasileira deseja manter no poder, para continuar usufruindo de seus privilégios, em detrimento de uma população ordeira e apática. Isto não me impede de criticar Lula, por ter sido republicano, ao iniciar o que hoje é chamado de ‘tradição’, a escolha do primeiro colocado na lista tríplice dos procuradores para ocupar a chefia da Procuradoria Geral da República e aplaudir o usurpador Temer por quebrar esta pseudo ‘tradição’.

Primeiro, porque não houve quebra de ‘tradição’ nenhuma. Afinal, a eleição da ANPR – Associação Nacional dos Procuradores da República é para indicar uma lista tríplice, os três nomes mais votados entre os procuradores, nomes que são oferecidos ao Presidente da República como pessoas que têm o respaldo dos seus pares.

Lula, com sua formação política fundamentada no sindicalismo, onde a disputa pelo comando dos filiados era intensa (hoje, nem tanto… assim como nos partidos políticos, a caciquia não gosta de largar o osso), é que inaugurou esta prática: uma disputa eleitoral é muito acirrada para que o vencedor não mereça ocupar o lugar pelo qual tanto lutou e, por isto, ele deve assumir o mando.

Segundo, porque é inconcebível dizer-se que há uma tradição em processo que foi criado há 16 anos e em uma sistemática que tem apenas 14 anos de vida (a ANPR instituiu a lista tríplice em 2001, mas Fernando Henrique Cardoso não deu bola para ela e nomeou quem ele quis, Geraldo Brindeiro, conhecido hoje como “Engavetador Geral da República”. Ou seja: só quatro procuradores gerais, Cláudio Fontelles, Antônio Fernando de Souza, Roberto Gurgel e Rodrigo Janot, durante os governos Lula e Dilma, foram indicados pelo presidente da República respeitando a primeira colocação na lista tríplice da ANPR. E, com exceção do primeiro, todos os demais tiveram condutas pouco republicanas com os presidentes que os nomearam, que, por sua vez, foram integralmente republicanos ao acatar a vontade da maioria dos procuradores da República.

Na concepção de muita gente fina, tanto medalhões carimbados de nossa grande imprensa quanto figuras recém entronizadas via redes sociais, a quebra de uma ‘tradição’ como esta (mesmo sendo ou por ter sido implementada por Lula) é muito ruim para a frágil democracia brasileira, pois enfraquece um dos pilares da institucionalidade do país. Como se os detentores de cargos e funções nestas instituições, a começar pelo mais importante deles, o presidente da República, estivessem mortos de preocupação com a nossa democracia…

Terceiro, porque nunca houve, até hoje, que eu saiba, qualquer questionamento público sobre a representatividade da ANPR, uma associação sem fins lucrativos e a qual um procurador da República se filia se quiser, ganhando, com isto, o direito de “nomear” o seu próprio chefe.  Alguém já se deu ao trabalho de pesquisar qual é a função de um Procurador Geral da República? Os milhões de palpiteiros e “sábios” que frequentam incansavelmente as redes sociais já tiveram curiosidade de se perguntar qual a importância para uma sociedade democrática de um Procurador Geral da República? O que faz, enfim, o chefão daqueles jovens concursados com altos salários encastelados naquele ondulado edifício azul atrás da Praça dos Três Poderes?

Para saber, não precisa nem levantar a b…..* da cadeira, basta digitar na Wikipédia… Lá está: “Segundo prevê a Constituição Federal, o procurador-geral da República deve sempre ser ouvido nas ações de inconstitucionalidade e em todos os processos de competência do Supremo Tribunal Federal. O procurador-geral da República também pode promover Ação Direta de Inconstitucionalidade[4] e ações penais para denunciar autoridades como deputados federais, senadores, ministros de Estado, o presidente e o vice-presidente da República. Além disso, pode propor, perante o Supremo Tribunal Federal, representação para intervenção nos Estados e no Distrito Federal[5] e, perante o Superior Tribunal de Justiça, o incidente de deslocamento de competência para a federalização de casos de crimes contra os direitos humanos.”

Daí, eu pergunto: um cara (uma cara, a partir de setembro) com essas atribuições fundamentais para uma democracia republicana com população superior a 210 milhões de habitantes e quase 150 milhões de eleitores, pode ser escolhido por cerca de 1.600 colegas de profissão?  Pior: considerando o tipo de votação determinado pela ANPR – cada procurador pode votar em três nomes da lista (este ano havia 08 candidatos) – o vencedor acaba tendo, como aconteceu este ano, pouco mais de um terço dos votos válidos…

 

Ou seja: o Procurador Geral da República indicado pela ANPR tem, aproximadamente, 600 votos! E, pior ainda: na eleição atual, o número de votos em branco foi o 2° colocado! Ainda não sei como o usurpador Temer não se aproveitou disso para indicar um procurador tipo engavetador para a função… Provavelmente porque caiu na conversa do procurador atual, Janot, que espalhou, antes da eleição, o boato  de que a Raquel Dodge tinha o apoio dele, Temer, do PMDB e do ministro Gilmar Mendes… E acreditou tanto que indicou-a, apesar da 2ª colocação obtida por ela, visto que os  587 colegas que votaram nela não acreditaram na mesma história, plantada com irrestrito apoio da Globo.

Aliás, esta participação da Globo no processo eleitoral da ANPR merece ser analisada com profundidade, o que, evidentemente, não será feito pelos procuradores. A história, de qualquer modo, vem sendo contada pelo  jornal GGN (http://jornalggn.com.br/noticia/o-fator-raquel-dodge-na-pgr,http://jornalggn.com.br/noticia/xadrez-de-como-a-globo-caiu-nas-maos-do-fbi, http://jornalggn.com.br/noticia/o-fator-raquel-dodge-na-pgr).

Em resumo, Nassif dá um panorama geral de tudo o que já foi descoberto, pelos setores investigativos de Suiça e Estados Unidos sobre os escândalos da FIFA e da CBF, envolvendo seus dirigentes e empresas ligadas à transmissão de Copas do Mundo, onde a Globo está inserida de forma indiscutível. E informa sobre a relutância do Procurador Geral brasileiro em colaborar com os órgãos desses países, exatamente pelo envolvimento da Globo com as maracutaias. Neste jogo, é que entrou a plantação, nos veículos da Globo, de histórias de apoio de políticos corruptos como Temer e ministros partidários como Gilmar, à procuradora Rachel Dodge, adversária de Janot e candidata ao seu lugar.

O que, no final das contas, responde definitivamente minha pergunta feita no post anterior: se até um procurador geral da República cuja eleição, pelos colegas, foi referendada pelo presidente da República, é capaz de conchavar e trocar favores com a Globo, quem é que manda no país?

 

 

 

 

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