O ódio (I)

Perdoem-me os santarrões e os indignados, mas eu estou fascinado com o brasileiro que frequenta, compulsivamente, as redes sociais, nestes tempos em que a vida política brasileira se resume ao petismo/lulismo versus anti-petismo/anti-lulismo fanatizados. Até em grupos zap-zapeanos em que o tema é específico, agro-floresta por exemplo, de repente aparece um post xingando Lula de fdp, respondido por outro xingando Moro de fdp…

Eu acompanho política há muitos e muitos anos – meu despertar para ela, me lembro bem, foi uma imensa passeata na avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, quando Getúlio Vargas se suicidou… Eu tinha 06 anos e “enchi o saco” da minha mãe até ela me dizer o que estava acontecendo: “foi o presidente que morreu!”, disse. Ela era uma dona de casa que não se interessava por política e só foi me dar uma resposta mais completa depois de conversar com meu pai, que não gostava de política, mas acompanhava-a com interesse crítico. E o fato foi marcante para mim: aquele povaréu na avenida, gritando, vociferando palavras de ordem e levantando o braço de punho fechado me cativou para sempre…

No início da década de 60, aluno do ginasial, eu já me achava um expert em política, se considerados meus colegas de Colégio Estadual ou meus amigos da turma do Mantiqueira, o edifício onde morávamos. Fosse por minha crônica timidez, fosse por uma aversão intelectual em me tornar parte de uma boiada, eu não participava de grupos, associações, partidos, “panelinhas”… tinha três amigos “pra se guardar” e quatro ou cinco colegas de escola, com quem conversava, discutia, farreava e politicava, de acordo com aquilo em que eu acreditava.

E, naquela época, eu acreditava que JK tinha sido um bom presidente, que Jânio Quadros era desequilibrado, que João Goulart estava tentando modernizar o Brasil através das reformas de base e que Carlos Lacerda, o Corvo, era um “agente” dos Estados Unidos que, como porta-voz (um convincente porta-voz, aliás) da elite nacional, fazia de tudo para derrubar a incipiente democracia brasileira, entregando nossas riquezas aos ianques. Uma cantiga popular ficou muito famosa nesta época, cantada pela gente com letra adaptada: “Nesta rua, nesta rua tem um posto/ Que se chama, que se chama Posto Esso/ Dentro dele, dentro dele mora um gringo/ Que é dono da Aliança pro Progresso”.  (Esta Aliança era um programa de pseudo-ajuda americana que, na verdade, impunha a política ianque em países subdesenvolvidos).

Foram tempos apaixonantes… Primeiro com a campanha presidencial da vassoura (Jânio Quadros) contra a espada (Marechal Lott), depois com a tentativa de golpe do primeiro, eleito presidente, que renunciou 07 meses depois, falando em “forças ocultas” e achando que o povão iria exigir a sua volta, o que não aconteceu. Então, outra tentativa de golpe, com a elite querendo impedir a posse do vice presidente, João Goulart, que foi frustrada por um tradicional acordão político: Jango assumiu como presidente em um regime parlamentarista chefiado por Tancredo Neves, avô do Aecinho, tão evidente hoje. Não durou muito: num plebiscito, o povo jogou o parlamentarismo no lixo e Jango tornou-se presidente de fato. Que não durou muito, também. As elites econômica e política, inconformadas, arrebanharam apoio nos quartéis e na classe média e, mediante as marchas com Deus contra o comunismo e a corrupção (sempre ela) deram o golpe que vinham tentando desde JK. Desta vez,  vingou.

Mais ou menos, na verdade… A elite econômica retomou todos os seus negócios e negociatas, mas a política ficou chupando os dedos, porque os militares se apossaram do mando, e gostaram…! (até o Corvo foi cassado!)

Toda esta efervescência aconteceu entre 1960 e 1964, na plenitude da minha adolescência, e, nestes 04 anos de constantes e ferozes enfrentamentos políticos (havia colegas no Colégio Estadual, filhos da elite econômica e política, que defendiam com “unhas e dentes” as políticas conservadoras de seus pais), não havia espaço para o ódio.

Mesmo na época mais dura, quando a tortura tornou-se política de Estado, o ódio era uma prerrogativa dos mastins deste Estado policial, mas não frutificava nas discussões nas salas de aula ou nos encontros nos botecos, talvez porque a maioria de nós, de um lado ou do outro, não tinha qualquer noção real do que se passava nos porões dos dops e doi-codis.

Quando diretores do Centro Acadêmico do colégio foram presos, por exemplo, e que a gente fez uma passeata até o DOPS para libertá-los e mais 05 manifestantes foram encanados também, incluindo eu, quem se movimentou para libertar todo mundo, e conseguiu, foi um colega meu de sala, filho de um deputado federal muito ligado a Tancredo Neves, à época o grande político de Minas em atividade. Dias depois, lá estávamos nós discutindo de novo, eu pedindo uma reforma radical do ensino médio, ele defendendo a entrega das escolas para a iniciativa privada…

É claro que naquela época não existiam redes sociais… E é claro, também, que a possibilidade de se expressar livremente, muitas vezes sob proteção do anonimato, exacerbou ânimos e debates. E deu asas à imaginação: não é uma coisa fantástica você postar uma piadinha  racista em seu grupo familiar do Whats’App e, algum tempo depois, receber a sua piadinha em vários outros grupos que você participa? Não é fenomenal você receber uma mensagem dizendo que o sr. José Inácio Lula da Silva e o sr. José Maduro, presidente da Venezuela, compraram todos os juízes do TSE por 07 milhões de dólares para violar urnas eleitorais, e repassá-la imediatamente para todos os seus grupos como prova insofismável de que Lula é um ladrão… sem ao menos se tocar que nenhum dos dois se chama José, mas Luis e Nicolás?

De qualquer modo, mesmo que a gente debite às redes sociais a culpa pelas pessoas se sentirem livres para soltar todos os cachorros que aprisionaram por toda a vida, é fato que tais cachorros vem sendo alimentados há bastante tempo, de maneira a transformar discordância em  ódio, um ódio irracional, que não precisa de motivo ou prova para ser vomitado sem qualquer limite. (continua)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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