E se eu tivesse…

Gozado como a história de uma pessoa comum como eu, que só tive alguma expressão política e, mesmo assim, limitada ao meu próprio círculo, durante os anos de chumbo da ditadura militar, de repente se imbrica (e brinca) com a história do país… e de forma  totalmente inesperada, no bojo de uma delação bombástica que, inevitavelmente, vai derrubar um presidente da República.

Falo da delação dos irmãos e executivos da J&F, holding do Grupo Batista, que, muito mais que a do Grupo Odebrecht, arrebentou com um ícone imagético da moralidade pública, Aécio Neves, e com outro ícone imagético do raposismo político, Michel Temer.

Transcrevo uma das notícias, do UOL: “O ex-ministro da Agricultura Wagner Rossi admitiu nesta sexta-feira ter conhecido o empresário Joesley Batista, do grupo J&F, controlador da JBS, durante o período em que foi ministro da Agricultura, entre abril de 2010 e agosto de 2011, e que prestou ‘colaboração remunerada’ à companhia após deixar o cargo e passar pelo período de quarentena.

Pois bem… Antes de ser ministro da Agricultura, Rossi foi presidente da estatal em que eu trabalhei por mais de 25 anos e por cujo instituto de seguridade, que ajudei a criar, me aposentei. Nesta condição de aposentado, já recolhido a uma vida pacata de avô, ‘cuidador’ de galinhas caipiras e plantador familiar de milho e feijão, fui procurado por um ex-colega e amigo, velho adversário político dos tempos da ativa, também aposentado e, por coincidência, ocupante de uma chácara na mesma região onde moro, na qual ele construía sua casa.

Ele era petista da velha guarda, fundador de sindicato e importante líder trabalhista da empresa, principal responsável pela maioria dos direitos adquiridos pelos seus trabalhadores ao longo destes mais de 25 anos em que lá trabalhamos.  Como chefe da área de comunicação da estatal durante boa parte deste tempo, trabalhamos juntos muitas vezes e discordamos frontalmente outras tantas, sempre respeitando as posturas políticas um do outro.

Certo dia, vindo da sua, ele parou na minha chácara e, sem floreios como sempre, foi taxativo: “Precisamos voltar à ativa, companheiro… Se a gente não se mexer, o Instituto vai ser liquidado!” E lá fiquei eu quase que a tarde toda ouvindo-o descrever a situação estranha em que se encontrava nosso instituto de seguridade, que ficara 07 anos, por injunções políticas no passado, sob intervenção do órgão controlador e, devolvido à gestão dos próprios participantes quase 04 anos antes,  ainda não conseguira se livrar dos problemas que, oficialmente, haviam gerado a intervenção, e por ela não haviam sido resolvidos.

Convencido pelo velho amigo, passei a trabalhar com ele e outros colegas da associação de aposentados, em busca de soluções e, junto com ele, me reuni algumas vezes com o então presidente da empresa, Wagner Rossi. Em razão disto, quando houve a indicação para o Conselho Deliberativo do instituto – 03 membros eram indicados pela patrocinadora – meu velho amigo virou conselheiro titular e eu seu suplente.

O trabalho para “salvar” o instituto continuou, agora mais intenso e mais objetivo: como conselheiros, tínhamos liberdade para pesquisar documentos, solicitar informações e levantar dados do instituto que subsidiassem nossas contínuas reuniões com órgãos do governo que poderiam interferir na solução de seus problemas, como as secretarias de controle das entidades de Previdência Complementar ou do Tesouro ou de Controle das Estatais ou dos próprios ministérios a que elas se subordinavam.

Foi numa destas reuniões, com o mesmo Wagner Rossi, já então ministro da Agricultura do governo Lula, que meu destino se entrelaçou com a história do Brasil. Meu amigo tinha marcado uma audiência com o ministro, para solicitar sua interferência junto ao Ministério do Planejamento, que estava “enrolando” sua manifestação, através da Secretaria do Tesouro, quanto ao acordo que o nosso instituto, apoiado pela patrocinadora havia firmado com a Secretaria de Controle das Estatais, no sentido de quitar o débito passado, eliminando, de vez, o risco de nova intervenção, o que tornaria inevitável seu fechamento definitivo.

O gabinete do ministro da Agricultura era bem amplo, como todos os gabinetes ministeriais, e dispunha de uma sala reservada, onde Wagner Rossi concedia suas audiências menos pomposas ou politicamente convenientes. Como éramos “de casa” tentando resolver problemas “de casa”, fomos recebidos nesta sala… e lá estávamos explicando a situação para o ministro, quando sua secretária veio pessoalmente avisá-lo que o sr. Joesley Batista, da Friboi, precisava falar com ele com urgência, extra-agenda inclusive, e já estava lá na sala de espera, bastante nervoso, aliás.

Joesley não era um nome popular ainda, nem a Friboi contava com Tony Ramos como garoto propaganda. Mas, como todos ficamos sabendo mais recentemente, já era uma potência como patrocinadora de políticos – nas eleições de 2006, ele doara quase R$20 milhões em caixa 1 (imaginem em cx 2!) para as campanhas e, como um ativo participante da vida política, meu amigo sabia disso. Tendo o ministro pedido licença para nós, pois tinha que receber o visitante, e saído, meu amigo foi atrás até a porta e, sem que o ministro percebesse, manteve-a ligeiramente aberta.

Joesley entrou no gabinete e, com seu goianês típico, não mediu palavras para admoestar Wagner Rossi sobre o amigo Temer, que lhe fora apresentado recentemente por ele. Segundo o dono da Friboi, ele já autorizara repassar 03 milhões para o candidato a vice da chapa PT/PMDB, “e o homem queria mais!” E arrematou que podia arrumar mais, mas queria a contrapartida do ministério.

Ao ouvir isto, meu amigo puxou silenciosamente a porta e sentou-se à mesa, sob minha boquiaberta incredulidade, vez que paramos de ouvir a conversa no gabinete. Ele apenas murmurou: “depois te explico…” Meia hora depois, se tanto, o ministro voltou. Estava irritado, quase não prestou atenção no nosso pedido, pediu para passarmos um “paper” explicativo para seu chefe de gabinete, para ele ler depois, e prometeu que falaria com o ministro do Planejamento.

Saímos de lá, eu sabendo que teria que escrever o “paper” o mais rapidamente possível e meu amigo visivelmente irritado. No estacionamento do ministério, não aguentei e gozei: “E aí, ‘cumpanhêro’,  é só o vice que morde ou a Dilma se lambuza também?”  Ele sorriu, encostou-se no meu carro e, didaticamente, como se falasse para as massas, foi direto e claro: “Todo mundo se lambuza, Leo… Não há como fazer campanha eleitoral no Brasil sem morder bancos e empresas e o que mais tiver dinheiro. Eu sei disso, você sabe disso, a Justiça sabe disso… E eu não vou sair por aí gritando que o Temer, o grande Temer, três vezes presidente da Câmara dos Deputados é um corrupto, envolvendo um ministro que pode ser de grande ajuda para nós resolvermos o problema do instituto. Minhas convicções políticas me dizem agora, que denunciar um safado igual a tantos outros, é muito menos importante que tentar resolver a vida de nossos companheiros aposentados.” Ouvi calado e não retruquei, concordando com ele, mas mantendo uma interrogação em meu espírito: se a gente não deixasse passar certas coisas que são aceitas como inevitáveis, talvez nossa elite econômica e política fosse bem mais íntegra e responsável com o povo…

No dia seguinte, eu lhe entreguei o “paper”, que ele repassou ao chefe de gabinete do ministro, que o avisou, uma semana depois, que já se reunira com o ministro do Planejamento. Mas o instituto não foi salvo ainda não. A situação só foi resolvida 06 anos depois, no ano passado, quando eu já saíra do Conselho e meu amigo, após um ataque cardíaco fulminante, já tinha morrido.

Mas aquela interrogação reapareceu em meu espírito estes dias: e se eu tivesse denunciado a ‘troca de gentilezas’ proposta naquele gabinete (e, certamente efetivada em conversas posteriores), os 06 anos da roubalheira agora premiadamente delatada, poderia ter sido evitada? Ou mudariam apenas as moscas?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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