Classe média bovina

Velho amigo, antigo parceiro de trabalho, contesta mensagem minha, na qual afirmei que, ao contrário de outros países desenvolvidos, “a elite brasileira, bovinamente apoiada pela classe média, é predadora e imediatista.” Postou ele, então: “Não sei o que você entende por classe média. No meu entender, a classe média não é predadora e é quem mais paga impostos… e sustenta, principalmente, a elite política, que pouco produz e ainda rouba, (bem como) a máquina pública cara e improdutiva.”

Abstraindo-me do fato de que tanto eu como ele trabalhamos uns 30 anos nesta “máquina pública cara e improdutiva” e, ao contrário, sempre

Meu amigo, você acha que a elite sai às ruas com cartazes deste tipo?

fomos produtivos, trabalhando muito mais que o exigido e recebendo menos que o merecido, me permito rebater, semanticamente, a contestação de meu velho amigo, pois, claramente, eu não escrevi que a classe média é predadora e imediatista… eu escrevi que isto é uma característica da elite brasileira, apoiada bovinamente pela classe média! Classe média da qual, aliás, tanto eu como ele fazemos parte…

Para evitar conflitos bobos, tão comuns nas redes sociais, me cabe, acho, esclarecer a expressão ‘apoiada bovinamente’ e, para isto, preciso definir, antes, minha concepção de classe média, que não se encaixa exatamente nos parâmetros estabelecidos pelos órgãos oficiais, como o IBGE que, por sinal, não identifica classe social em média, alta ou baixa, mas em faixas, A, B, C, D e E, de acordo com a renda, tendo como parâmetro  o número de salários mínimos.

Seguindo este critério, 27% da população (56,7 milhões) têm renda inferior a R$5.000,00 (+/- 05 SM, hoje) e 26% (54,6 milhões) têm renda superior a R$20.000,00 (+/- 20 SM). Ou seja, de acordo com o IBGE, a classe média brasileira é formada por 98,7 milhões de pessoas. Mesmo acreditando que é possível que famílias que recebam 05 salários mínimos/mês consigam gozar plenamente de todos os direitos básicos de cidadania – educação, saúde, locomoção, alimentação e moradia  adequadas, e lazer, pelo menos – minha concepção de classe média eleva um pouco os limites técnicos do IBGE: para mim, são todos aqueles com renda familiar entre R$8.000,00 e R$25.000,00,  o que arredonda a conta para 100 milhões numa população de 210 milhões de almas… E qual é a postura normal da imensa maioria destes 100 milhões de brasileiros?

Em 2005, um grupo de professores da USP visitou a TV Globo para acompanhar a produção do Jornal Nacional – maior telejornal do País, 43 pontos de audiência àquela época (já reduziu um bocado depois). Em dado momento, o editor e apresentador do jornal, William Bonner, definiu o espectador padrão do noticiário – aquele para quem o JN era feito – como Homer Simpson, alguém com dificuldade para entender siglas e coisas mais “complexas”.

Para quem não acompanha, ‘Os Simpsons’ é um famoso desenho animado americano, criado por Matt Groening como um protótipo da família de classe média americana. Homer Simpson, o pai, tem mais de 1m80, pesa uns 110 quilos, usa roupas tamanho extra-grande  e ainda não chegou aos 40 anos. E tem duas características básicas: nunca leu um livro, mas vê TV compulsivamente. Nas eternas discussões em família, com colegas de trabalho ou com seus chefes, tem uma desculpa natural, quando as coisas dão errado: culpa o cara que não fala inglês!

O brasileiro de classe média não é tão alto e nem pesa tanto, mas pensa ‘igualzim’ Homer: nunca é culpado de nada, tem uma fé inabalável na Globo (saiu no Jornal Nacional, é verdade…!), não se interessa por política (todo político e ladrão!) e acha que levar vantagem em qualquer coisa é uma glória…! E o Jornal Nacional do editor William Bonner, em vez de cumprir uma das premissas básicas do jornalismo, formar, prefere usar seu ainda enorme poder de convencimento para manter este público padrão afastado da realidade ou, pior, informado de uma pseudo realidade, mais parecida com as novelas que ela produz, com grande maestria, aliás…, e que ainda garantem sua liderança de audiência e de faturamento.

Ou seja: os telejornais novelescos e as novelas romanescas da Globo catequizam e sedimentam o pensamento único da classe média brasileira, que só é capaz de sair de sua zona de conforto, vestindo camisas da CBF, para protestar, devidamente protegida pelas forças policiais, ou fazer buzinaços em seus carros do ano ou, ainda, bater panelas nas varandas de seus apartamentos ou casas em bairros de elevado padrão das grandes cidades brasileiras, quando há uma  palavra de ordem transmitida sem sutilezas pela Globo…

Contrapondo-se à visão pouco lisonjeira que tenho de minha própria classe social, meu velho amigo diz que “a classe média é quem mais paga imposto neste país e quem sustenta a elite política…”  E, mais uma vez, eu discordo, em parte, da conotação que ele quis dar: não tenho dúvidas de que quem mais procura cumprir seus deveres com o Leão neste país, apesar de uma sonegadinha aqui, outra acolá, somos nós, classe média, e fazemos isto exatamente porque “apoiamos bovinamente a elite…!” Ou seja: nós não lutamos com unhas e dentes pela nossa dignidade, contentando-nos em seguir os padrões estabelecidos por quem manda na economia e na política brasileiras e de conformidade com o que sai nos telejornais da Globo…!

Nós preferimos pagar por escolas primária e secundária particulares caras (e encher o peito de orgulho ao declarar: minha filha estuda no Galois!) em vez de brigar para que as escolas públicas sejam bem equipadas, paguem bem os professores e tenham professores capazes, pois é exatamente para isto que servem os impostos que nós pagamos… De outro lado, o que é extremamente contraditório, nos vangloriamos quando nossos filhos passam numa universidade pública (milha filha vai fazer Filosofia na UnB… óóóóhh!).

Nós preferimos pagar um plano de saúde caro, cujo contrato tem letras miudinhas que a gente só vai entender quando precisa dele, em vez de brigar para que o SUS seja priorizado pelo governo (qualquer governo) e tenha orçamento suficiente para prestar serviços de qualidade a toda a população brasileira, inclusive nós, que acreditamos piamente que o que a TV nos mostra – filas imensas, pacientes em macas pelos corredores dos hospitais, aparelhos cirúrgicos quebrados – é a única realidade da saúde pública que, na verdade mesmo, com todas as suas deficiências, ainda atende, e sem queixas, milhões de brasileiros que não têm renda suficiente para pagar um plano privado.

Nós preferimos cercar nossas casas de muros e dotá-las de parafernálias barulhentas  e, quem sabe?, andar armado, a fazer protestos e manifestações ou bater panelas exigindo que os impostos que pagamos religiosamente se destinem a manter um sistema de segurança público eficiente, bem dotado de equipamentos e veículos, e pessoal bem treinado para proteger a coletividade, tirando bandidos e assassinos das ruas, onde eles se sentem cada vez mais à vontade.

Nós preferimos aplaudir os massacres sistemáticos de bandidos e assassinos presos em penitenciárias infernais, a exigir que o dinheiro arrecadado pela Receita Federal seja empregado na modernização de nossa Justiça, permitindo maior agilidade, eficiência e menor pomposidade de nossos juízes, sempre tão imponentes em suas togas pretas, sempre tão verborrágicos em suas sentenças eivadas de citações latinas, e sempre tão desinteressados em atualizar nossa legislação, adequando-a ao nosso tempo, um tempo em que o latim e as togas já deviam ser peças de museu e as sentenças diretas e desadjetivadas.

E nós preferimos, agora que temos o poder de nos comunicar diretamente através das redes sociais, ficar provocando parentes, amigos, colegas, vizinhos, gozando, criticando ou até mesmo xingando, suas preferências futebolísticas, políticas, religiosas, de classe ou de gênero, em vez de discutirmos seriamente a situação do país que, 517 anos depois do descobrimento, permanece subdesenvolvido política, econômica e mentalmente, deitado eternamente em um berço esplêndido, do qual, sempre que começa a levantar, é golpeado por uma elite predadora e imediatista, bovinamente apoiada pela classe média.

 

 

 

 

 

 

 

2 comentários em “Classe média bovina

  1. Palmas, palmas, palmas! Estava com saudade desse texto contundente, verdadeiro e exclusivamente seu. Bom retorno, escreva diariamente, nós ficaremos agradecidos.

  2. Acho que não conheço ninguém que consiga ser tão claro, transparente, verdadeiro e se fazer compreender tão bem como você. Adoro ler os seus textos, pois com o uso de expressões, palavras e estruturas simples, você demonstra seu alto poder de comunicação, expressando suas idéias de uma forma totalmente acessível a qualquer leitor. Parabéns, Léo e continue sempre nos presenteando com os seu conhecimento e sabedoria!

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