O anoitecer, da minha varanda (II)

 … e já foi embora!

Brasília era outro mundo!

Minha caçula, logo depois que se formou, batalhou e conseguiu um estágio na Alemanha. Foi para uma cidade universitária na divisa com a Polônia e lá conviveu com estudantes de várias partes do mundo.

Cottbus, Alemanha

E aproveitou fins de semana e folgas para conhecer algumas cidades do Velho Mundo, voltando com outra cabeça! Assim como minhas duas primeiras filhas, que também batalharam, foram e se estabeleceram nos Estados Unidos, a primogênita há mais de 20 anos já!

Brasília teve o mesmo sentido para mim! Mudou minha cabeça mas, ao contrário de minhas filhas, cujas cabeças se abriram para a diversidade, para a importância de se desprender de conceitos impostos e preconceitos arraigados da própria sociedade em que se criaram e viveram, minha cabeça fechou-se um pouco mais,
e de um modo bem negativo, acabando com todo aquele idealismo juvenil que eu ainda imaginava ser possível implantar no país, apesar dos tempos duros e ditatoriais que vivíamos então, e com toda aquela ilusão de que o ser humano é fundamentalmente bom, tornando-se mau apenas por causa do meio ou das condições em que sobrevive.

Por um lado, Brasília me permitiu realizar o primeiro grande sonho que eu sempre tive, ouvindo minha mãe contar suas “aventuras” Brasil adentro, junto com meu pai médico sanitarista: acompanhando o jovem presidente da estatal que fui assessorar, viajei todo o país, todas as capitais e centenas de interiores… e conheci o Brasil real, um contraste profundo entre as muitas e imensas belezas e riquezas naturais e seus habitantes, uma gente sem fibra, de visão limitada, totalmente dependente e submissa às sub-elites gananciosas e hipócritas de cada cidade-polo ou mero vilarejo.

Por outro, Brasília me permitiu conviver com o supra sumo destas sub-elites, aquilo que é indicado pela elite, o poder econômico, para exercer o poder político, governando (em regime de força ou democrático), legislando e/ou julgando em nome do povo, mas de acordo com seus próprios e exclusivos interesses.

Assim, mais do que insensível e racional, como capa de defesa, eu me tornei cético, sarcástico, frio… e naturalmente convicto de que os seres humanos, com as honrosas exceções de praxe, não
merecem a salvação eterna de um Deus Todo Poderoso para quem eles tanto oram para salvar suas almas pecadoras (mas continuam pecando e indo à missa todo domingo!) e em quem depositam uma fé que deveriam reservar para si próprios.

Infelizmente, como a imensa maioria das mulheres e dos homens mais sensíveis, eu não consigo separar o eu social/profissional do eu pessoal/familiar… e, assim, carreguei para dentro de casa este meu eu cético, sarcástico, frio! Cada viagem a serviço, feliz por conhecer mais um rincão do país, me tornava mais sorumbático, mais espinhento e menos receptivo ao abrigo seguro, acolhedor e carinhoso da mulher e à curiosidade natural das filhas.  E meu primeiro casamento não resistiu a isto…

Solteiro novamente, minha casca cada vez mais cascuda abria espaço apenas para os fins de semana que minhas filhas curtiam comigo. Que não duraram muito, pois elas, com a mãe, se mudaram para o Rio de Janeiro. Aí, como já escrevi (De festas e farras I), “as festas tomaram conta dos dias e noites, motivadas por qualquer coisinha…”

Dois, três anos nisto e meu eu sensível ficou “cheio”, rebelando-se contra as farras solteiras, a irresponsabilidade das companhias de ocasião, a falta de um ancoradouro onde a ganância e hipocrisia do mundo lá fora pudessem permanecer lá fora. E lá fui eu, com meu ceticismo, sarcasmo e frieza, mas com a certeza que a maturidade me dava, em busca de um abrigo seguro para a minha sensibilidade escondida, mas sempre querendo emergir. Que encontrei e onde me abriguei por 30 anos…

A casca se tornou mais flexível. A convivência com um amor jovem, sensível e que encarava o ser humano com bondade e a vida como desafios a serem vencidos sem esmorecer, e com a família dela, que trocava as divergências de personalidade por um amor incondicional, fez meu ceticismo abrir frestas para algumas esperanças, o meu sarcasmo retornar à ironia original, a minha frieza acalorar-se um pouco.

E trouxe mais três filhas, uma do coração, outra, que se tornou a caçula que acaba de partir novamente, e a terceira, que seria a caçula, mas que morreu com seis meses, a grande tristeza que voltou a me ‘fustigar’ nestas tardes à varanda, esperando a noite chegar. (Explico: aos 26 anos, se tivesse sobrevivido, como Jordana estaria hoje? Que influência ela teria tido na minha vida, tão incrédula e agnóstica? Como nós estaríamos hoje?)

Repito: a casca se tornou mais flexível… mas não deixou de ser casca. Continuei pouco accessível a demonstrações emotivas, continuei ditando regras racionais, continuei incutindo na cabeça das novas filhas – como fizera com as duas primeiras – que o mais importante na vida era ser livre, desde que com responsabilidade… e continuei distante, sem afagos, sem carinhos excessivos, sem conversas íntimas…

Todas acolheram os conselhos: são livres e responsáveis e são felizes e realizadas, com ou sem companheiros, com ou ainda sem filhos… mas, para meu castigo, seguiram tais conselhos à risca demais, pois são totalmente independentes, donas de seus narizes, não precisando do pai para decidirem suas opções, suas escolhas, suas vidas, enfim… E estão longe ou muito longe de mim.  E, na maior parte do tempo, fora do alcance dos afagos, dos abraços, dos beijos, do carinho, do bate-papo que restringi tanto em lhes dar enquanto cresciam, e que agora estão sobrando, sem ter a quem serem dados sempre e à qualquer hora.

Daí, a mexida comigo pela volta… temporária… de minha caçula! Mas, não devia… eu venci! Cada uma vive a sua vida, como eu sempre quis, sem depender de nada e de ninguém!

Mas, como eu gostaria que dependessem um pouquinho que fosse de mim! (continua)

 

 

Um comentário em “O anoitecer, da minha varanda (II)

  1. É amigo, a gente desenha uma coisa na tela e sai outra, mas não tem importância, é tudo empréstimo mesmo. Uma riqueza danada a sua vida, ainda que não esteja em nenhum banco da Suiça. Abração. SOL

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