Deus já desistiu…

As redes sociais tornaram-se uma febre hoje. Na comunidade em que moro há muitos grupos de discussão, que vão se multiplicando na medida em que os participantes encontram interesses comuns, ao mesmo tempo que eliminam aqueles que não se enquadram no tema predominante. Estes, por sua vez, acabam formando outro grupo, mais eclético, muitas vezes até para abrir espaço para discussões sérias de assuntos sérios, mesmo que as divergências sejam gritantes, o que provoca, às vezes, desrespeito e xingamentos despropositados.

Eu participo de quase todos os grupos, mesmo que seja só para ler os posts, sem me manifestar diretamente naqueles com viés político – nem sempre consigo ficar calado, seja porque a afirmação postada demonstra uma ignorância absurda, típica de quem se informa apenas pelo Jornal Nacional, seja porque a discussão mantém um bom nível, com os participantes respeitando-se e expondo pontos de vista que merecem ser apoiados ou contestados.

Não foi assim a última de um destes grupos… Começou no dia 31 de março, quando um participante postou esta charge do Angeli e um texto: ‘A ditadura existiu… Hoje é seu aniversário’. Quase 05 horas depois, outro participante respondeu: ‘Gostaria de viver (a ditadura) de novo. Porque hoje eu sobrevivo. Viva o GOVERNO MILITAR. DESCULPE OS MACONHEIROS E VAGABUNDOS DE TODO O brazil DE HOJE.’

O primeiro ‘postante’ replicou de imediato e, tentando manter um bom nível de discussão, lembrou que “na época da ditadura era proibido falar, se reunir, cantar, dizer que a ditadura era ruim”. Fez um histórico daquele período, terminando assim: “Como se percebe, esses caras (os guardas da esquina) tinham a cabeça bem, bem, bem pequena… mas tinham fuzis nas mãos.” O outro também foi rápido na tréplica: “Que mentira! Não conheço ninguém que sofreu essas falas alienadas. NINGUÉM! Nessa época, andávamos na madrugada
sem violência. Hoje em dia é o caso de pai de família sendo morto de dia na frente de todos… Isto é fala de gente medíocre, alienada, globista, maconheiro, ladrão, vagabundo, tudo de ruim!”

Outros participantes entraram na discussão tentando chamar o ‘enfezadinho’ para uma troca de idéias respeitosa, sem ofensas e com argumentos sérios, mas não adiantou, o apoiador da ditadura persistiu com seu baixo nível até depois das 08 horas da noite.  Nesta polêmica eu não entrei porque não foi uma polêmica de verdade: o contendor solitário de um lado era algum revoltado  online que não viveu a ditadura, mas vive a insegurança dos tempos de hoje, a qual debita à democracia, e, por isso, acha que violência se combate com violência, razão para a volta dos militares ao poder.

Eu vivi a ditadura e, como já escrevi aqui, quase 50 anos depois, ainda tenho medo do guarda da esquina! Não entrei na clandestinidade, não apoiei as lutas armadas e acabei participando diretamente de governos militares – mesmo discordando deles – quando fui convidado para trabalhar numa empresa estatal na época dos generais presidentes Geisel e Figueiredo. Mas tive amigos fraternos que foram presos, que foram torturados, que morreram numa luta desigual pelo restabelecimento da democracia no Brasil.

Lembro um deles, Maciel, um dos codinomes que meu amigo usou na clandestinidade. Foi meu colega de ginásio, participou comigo da ‘guerra das rolhas e bolinhas de gude’ (quando enfrentamos a Polícia Militar Montada de Minas num comício do Brizola em Belo Horizonte), que entrou na clandestinidade, foi preso pela OBAN (Operação Bandeirante) e ficou 03 anos no Presídio Tiradentes. Quando foi libertado, no início dos anos 70, eu estava recém-formado em Jornalismo e era Chefe de Arte numa gráfica que tentava ser editora. Pela minha formação, tinha me transformado em editor de revistas técnicas e especializadas, quando Maciel me procurou. Precisava de um emprego – ele vivia com os pais, tentava voltar para a faculdade, mas a ditadura exigia que ele, como ex-prisioneiro, se tornasse uma “pessoa produtiva” e apresentasse carteira de trabalho quando comparecesse a uma delegacia de polícia, o que era obrigado a fazer uma vez por mês (uma das formas da ditadura punir os que se insurgiam contra ela era esta: obrigavam o cara a trabalhar exatamente porque as empresas tinham verdadeiro pânico de empregar gente que, marcadamente,  era contra os generais-presidentes!)

Conversei com o Mauro Lúcio, dono da gráfica, e convenci-o de que precisava de um auxiliar, uma espécie de “pau para toda obra”, já que, como chefe de arte e editor, não dava tempo de eu editar a revista Bandeira Livre (que a gente tinha criado para motoristas de taxi), os informativos técnicos de educação e, ainda, acompanhar os trabalhos encomendados à gráfica. Ele aceitou meus argumentos e contratou Maciel, sem se preocupar com seu histórico pessoal. Trabalhamos juntos um bom tempo. Eu tinha me casado há quase dois anos, minha primeira filha estava a caminho e quando conseguia sair do trabalho antes das sete horas, costumava levar Maciel até perto de sua casa, que era caminho para a minha.

Um dia eu notei que Maciel estava extremamente nervoso, desatento, angustiado. Falei com minha mulher na hora do almoço, expliquei a situação, e avisei-a que ia demorar e, ao sair do trabalho, convidei Maciel para tomar uma cerveja. Ficamos até três horas da manhã sentados num bar perto da sua casa, para desespero do dono e angústia da minha mulher (não existia celular naquela época, nem eu tinha telefone fixo em casa). Mas, eu tive uma aula de ditadura!

O motivo do desespero de Maciel é que lhe confirmaram que sua companheira (na clandestinidade) tinha, realmente, sido morta há algum tempo (enquanto ele estava preso), não num confronto com os militares, mas numa câmara de torturas no interior do Rio de Janeiro (hoje se sabe que muitos dos ‘desaparecidos’ morreram por causa das torturas e desapareceram no forno de uma usina de açúcar desativada em Campos dos Goytacazes, no Estado do Rio).

Acalmado o desespero da alma, ele passou a contar seus anos de clandestinidade, suas esperanças a cada pequena vitória numa luta desproporcional contra um governo muito bem armado: reunir uma dúzia de operários perto de uma fábrica para convencê-los a lutar contra a ditadura antes que alguém dedurasse e a polícia chegasse, entrar numa joalheira à noite e ‘desapropriar’ algumas jóias, conseguir vender estas jóias para receptadores, conseguir escapar de uma ‘batida’, que chegava de repente, com 05, 06 carros e policiais bem treinados, que estavam ali para matar e não para prender…

Numa destas, ele levou três tiros, um de raspão na cabeça e dois na perna direita. Não morreu e foi levado para os porões do DOI-CODI de São Paulo. Os ferimentos foram tratados lá mesmo, mal tratados por sinal, porque ele mancava visivelmente da perna direita. Foi torturado uma semana seguida e despejou tudo que sabia, o que não era muito: suas funções básicas tinham sido doutrinárias em fábricas do ABC ou, raramente, pequenos assaltos a símbolos do capitalismo, como joalheria, agência de automóveis, mansão no Morumbi e um haras em Ribeirão Preto, onde a única coisa que conseguira foi afugentar os cavalos para as redondezas.

Mas, para tranqüilidade de sua consciência, não dedurara ninguém, não porque conseguira, quando perguntado, agüentar a torção do alicate nos ferimentos da perna, os choques elétricos no saco, a mangueira de água no ânus ou o pau de arara… Não! Simplesmente, por auto-defesa, ele não conhecia nem convivia com seus companheiros de luta: suas reuniões e panfletagens em fábricas eram solitárias e seus parceiros de ‘desapropriações’, nunca os mesmos, só se encontravam pouco antes dos atos, separando-se logo após (à época, sua companheira já havia se mudado para o Rio, onde fora presa pouco antes dele).

Notei uma angústia imensa em Maciel quando ele se referia à tortura e, pensando que fosse uma lembrança física do que ele passara, perguntei se ele ainda tinha pesadelos com aquilo.  Seus olhos me fitaram com uma tristeza tão profunda e uma desesperança tão clara que tive vontade de pedir desculpas pela pergunta… mas ele disse, simplesmente: “Não. A dor física é momentânea, passa quando você tem certeza que não vai mais ser torturado. O que acaba com a resistência de qualquer um é exatamente não saber se, depois de uma sessão de tortura, vão te torturar novamente no dia seguinte… e no dia seguinte… e no dia seguinte…”

Sua tristeza e desesperança vinha de outra coisa: “Você se lembra dos tempos que eu participava da JEC (Juventude Estudantil Católica), não lembra? Você era muito arredio às coisas da Igreja, nunca entrou, mas eu tinha uma fé inabalável nas palavras… no sacrifício de Cristo, na bondade intrínseca do ser humano, na solidariedade e no amor entre as pessoas. A tortura me mostrou o quanto animalesco o homem pode ser… como tem seres humanos que se comprazem, que se deliciam com o sofrimento de outro ser humano… quão sádico pode ser  um homem munido de poder absoluto sobre outro, que arrota sua graduação militar enquanto puxa a unha de sua ‘presa’ com um alicate! Eu não me sinto derrotado pela ditadura e eu tenho certeza que ela acaba, mais dia, menos dia (e acabou uns 12 anos depois)… Eu me sinto derrotado como ser humano!”

Nunca mais conversamos sobre isto. Ele trabalhou mais um tempo comigo, mas conseguiu voltar para a Faculdade de Engenharia, saiu da gráfica e, mais tarde, tornou-se um engenheiro bem sucedido. Com minha vinda para Brasília, perdemos o contato… mas me lembro nitidamente de seus olhos profundamente tristes e desesperançados quando escuto ou leio alguém dizer que não houve ditadura no Brasil ou que o brasileiro precisa é de um regime de força ou que a tortura é um mal necessário. 

A extrema violência política que aconteceu há 50 anos apenas – que derivou para uma violência física sem precedentes – contadas, mostradas em fotos, vídeos e documentários nas redes sociais pós-Internet (será que os professores de história contaram a história verdadeira nestes 50 anos?), ao que parece, não convenceu uma parcela das gerações mais novas que ditaduras, militares ou civis, são desastrosas para um país e toda a sua população. E com este novo golpe que se abateu sobre o país ano passado, tenho certeza que, se Deus existe, ele já desistiu de ser brasileiro há algum tempo!

P.S. – Depois de ler este post no grupo (em que preservei os participantes, claro), feito no dia seguinte, fiquei em dúvida: o defensor da ditadura é um mau caráter que aproveita o anonimato (usar o endereço do próprio pai) para destilar seu ódio contra o “brazil”… ou é, apenas, um revoltado contra a situação de insegurança no país todo, que associa democracia com libertinagem e, por isso, clama por um regime de força…? Será que ele, provavelmente menor de 50 anos e assim como tantos outros revoltados on line, tem alguma noção do que é um regime de força?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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