As “do lar” saem às ruas…

Em princípios dos anos 60, eu tinha 15 para 16 anos e estudava num Colégio Estadual de Belo Horizonte, ao lado do Convento dos Dominicanos, uma das origens da minha formação política. Eram tempos difíceis, de adolescência ‘braba’; o estudante exemplar que eu sempre fui, havia tomado bomba na 3ª série e, como “castigo” – do próprio colégio – fui transferido do Estadual Central, mais próximo de casa, para uma de suas “sucursais”, lá no alto da Serra.

Na minha turma havia alguns colegas que pertenciam à JEC, Juventude Estudantil Católica, já com uma cultura política bem sedimentada, aos quais me juntei, pois minha formação política ainda era muito teórica, baseada quase que inteiramente nas dezenas de livros de todos os matizes que pegava da biblioteca de meu pai. Sempre que podíamos – quando havia aulas de Moral e Cívica, especialmente, dadas pelo pai do Aureliano Chaves, um político conservador que depois, durante a ditadura, foi governador de Minas e vice-presidente da República, a gente se arranchava no Convento para discutir (e aprender) política com os freis, especialmente frei Marcelo, que estudara na França, e o frei porteiro – não me recordo mais o nome dele.

E eram tempos difíceis, também, no país. A renúncia de Jânio Quadros sete meses após assumir a presidência, implicava democraticamente na assunção do vice, João Goulart, um afilhado de Getúlio Vargas (derrubado pelos poderosos, que haviam bancado Jânio, apenas seis anos antes), o que só foi aceito por estas mesmas forças se o regime político brasileiro se tornasse parlamentarista. Jango topou, assumiu o poder (com Tancredo Neves de primeiro ministro), promoveu um plebiscito, ganhou, e o regime voltou a ser presidencialista, encolerizando a elite empresarial e política, que começou a atiçar os quartéis para o “perigo vermelho” que ameaçava o Brasil.

Do outro lado, as forças progressistas aliadas ao presidente, iludidas pela convicção de que o povão, por quem estavam lutando, iria defendê-las de qualquer ameaça de golpe, mas sem contar com grandes respaldos econômicos e militares, tentavam impor as chamadas ‘Reformas de Base’, um conjunto de projetos de lei que pretendia virar o Brasil de cabeça para baixo, revolucionando a estrutura dos setores educacional, urbano, fiscal, financeiro, eleitoral, político, tributário e agrário do país, de modo a, em curto espaço de tempo, diminuir a gigantesca desigualdade social imperante há tantos séculos.

O Brasil começou a se radicalizar, então… Ou melhor, o poder político e econômico e a classe média urbana, e os sindicatos e os movimentos sociais ainda incipientes assumiram campos opostos e, empurrados por líderes carismáticos, de um lado e de outro, passaram a se enfrentar, às vezes com violência, sendo que o primeiro lado sempre contava com apoio das forças policiais.

Enquanto Carlos Lacerda, um jornalista e orador brilhante, dono da Tribuna da Imprensa,  então governador do Rio, insuflava a classe média através da imprensa, que descia o sarrafo no governo Jango, Leonel Brizola, cunhado deste, ex-governador gaúcho, nesta  época deputado federal pelo Rio, eleito com a maior votação da história até então (270 mil votos), percorria o país agitando as massas, para arrepio  das forças  conservadoras.

Uma das vezes que esteve em Belo Horizonte, convidado pela Assembléia Legislativa de Minas, todos os movimentos sociais foram convocados para prestigiar o “grande líder progressista” mas, sabedores da natural antipatia do futuro “grande líder civil da Revolução”, o banqueiro Magalhães Pinto, então governador mineiro, pelo Brizola, muita gente, principalmente os estudantes, foi aconselhada a levar rolhas e bolinhas de gude nos bolsos, pois era esperada a presença da Polícia Militar que, nesta ocasião, utilizava a Polícia Montada para dispersar multidões.

Não deu outra: não me lembro se Brizola conseguiu falar qualquer coisa no auditório (a transmissão para o público que se aglomerou do lado de fora do recinto era por auto-falantes, não existiam telões ainda…). Mas me lembro muito bem da cavalaria recebendo ordem e avançando sobre o povão aparvalhado. E me lembro mais nitidamente ainda dos pequenos grupos (eu no meio) que iam se formando na lateral do corredor que se abria para a cavalaria avançar e começavam a despejar as rolhas e as bolinhas de gude, para desespero dos cavaleiros montados que iam se esborrachar  no chão quando os cavalos começavam a cair.  Pobres cavalos… alguns, sem dúvida, quebraram as pernas e foram sacrificados!

Mas, as grandes aglomerações humanas aconteceram do outro lado: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Como diz a Wikipédia, no Google: Vários grupos sociais, incluindo o clero, o empresariado e setores políticos diversos se organizaram em marchas, levando às ruas mais de um milhão de pessoas com o intuito de derrubar o governo Goulart. A primeira das 49 marchas aconteceu no dia 19 de março – dia de São José, padroeiro das famílias – em São Paulo e congregou entre 300 e 500 mil pessoas. Ela foi organizada por grupos como Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE), União Cívica Feminina (UCF), Fraterna Amizade Urbana e RuralSociedade Rural Brasileira, dentre outros grupos, recebendo também o apoio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e do controverso Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)”. Controverso aí no texto da Wikipédia é porque hoje, sabe-se, o IPES era financiado por interesses americanos, inclusive a CIA.

As fotos da época mostram, com clareza, muitas mulheres participando das marchas, várias com terços nas mãos, ou carregando imagens de santos ou de mãos postas rezando a Papai do Céu para que livrasse o país dos comunistas comedores de criancinhas, amém! Infelizmente, não eram garotas que, como nós, amavam os Beatles e os Rolling Stones!

Eram, efetivamente, senhôras do lar, provavelmente as donas de casa em que o presidente Temer estava pensando quando pronunciou seu discurso em homenagem ao Dia Internacional da Mulher…

Graças aos deuses, o Brasil já evoluiu um pouquinho além da cabeça do Michel. As mulheres que saíram às ruas pelo Brasil inteiro neste 08 de março têm outra envergadura, conforme mostram as fotos. Elas não rogam para que um Deus Todo Poderoso, Criador do Céu e da Terra, lance seus raios sobre os perigos que “homens maus” criaram em seu mundo cor de rosa… Elas lutam pelos direitos delas, direitos que são desrespeitados diariamente pelos “homens bons” que vivem a seus lados, direitos que são desprezados pelos que dispõem do poder de legislar, de julgar e de executar o que a arraigada consciência machista deste país ainda pensa que é válido.

 

 

 

 

Fotos: Google/Mídia Ninja/Jornalista Livres

Eu creio – creio, não, tenho certeza – que elas ganharão esta parada. Serão elas que, no arrojo da luta pelos seus direitos, farão com que esta democraciazinha de merda em que vivemos, manipulada por homens como o presidente, sempre em benefício próprio, consiga ser uma democracia verdadeira, onde todos, miliardários, ricos, pobres ou remediados, homens e mulheres, hetero, homo ou transexuais, brancos, negros, índios, pardos ou verde-amarelos, sejam iguais perante a lei e perante a consciência de cada um.

 

 

 

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