VIOLÊNCIAS (I)MORAIS

O fato não é extraordinário… ao contrário, ele é até muito comum em edifícios e condomínios Brasil afora. A classe média brasileira é culturalmente preconceituosa, muito particularmente com relação ao status, à situação social. Como a nefanda distribuição de renda no país, ao longo dos séculos, deixou na pobreza uma imensa maioria de pretos, pardos e nordestinos, acaba havendo um misto de racismo e discriminação neste preconceito. E é algo que vem desde os tempos coloniais, uma situação com a qual eu convivi quando menino ainda, morando num prédio em pleno centro de Belo Horizonte.

Naquela época, as famílias de classe média como a de meu pai, médico, tinham, obrigatoriamente, uma empregada domésticaViolencias morais 7, que ainda não era denominada ‘sViolencias morais 1ecretária do lar’ ou ‘colaboradora’, como estabelece, hipocritamente, o politicamente correto atual. Meu pai detestava reuniões de condomínio, mas ia em todas, porque, dizia ele: “só servem para Fulano e Sicrano ficarem se pavoneando por suas supostas qualidades superiores e ‘cagando’ regras que, se ninguém contestar, são aprovadas, obrigando todos a segui-las..

Uma das regras que tentaram impor era a das empregadas só usarem o elevador de serviço e, assim mesmo, quando não houvesse algum patrão usando o mesmo. Um dos inquilinos – não dono do apartamento, mas com procuração do dono – um dentista preto, se revoltou com a proposta, quando soube que ela seria votada numa reunião, e iniciou um movimento para que o maior número possível de moradores, donos ou iViolencias morais 6nquilinos, comparecesse à reunião para vetar a proposta.

Nós, garotos de 10, 12 anos ainda, muito amigos do filho dele, o Pelé (o apelido era inevitável, pois o garoto Violencias morais 11era preto e jogava muita bola!), entramos de sola na campanha, pregando cartazes, falando com os pais e vizinhos, mesmo sem compreender bem o sentido daquele movimento – preconceitos de classe, cor, religião, gênero… não eram coisas com as quais nos preocupássemos, mesmo porque a ‘tchurma’ do Mantiqueira era formada por brancos, pretos, pardos, católicos, mórmons, espíritas, filhos de pais udenistas, petebistas e pessedistas… e tinha até um, Vasquim, com nítidas tendências homossexuais! E ninguém estava nem aí para estas ‘diferenças’…!

Mas, a realidade é que o preconceito, que sempre existiu, agora é mais explícito. Seja porque ele começou a ser combatido e, por isso, passou a ser mais divulgado, seja porque os preconceituosos resolveram mostrar a cara, não fingindo ser aquilo que não são. Esta semana, dois fatos conseqüentes das Olimpíadas que repercutiram intensamente na mídia e nas redes sociais demonstram claramente esta nova face do velho Brasil cordial: os xingamentos carregados de preconceito contra a nadadora Joanna Maranhão e a falsa aclamação da judoca Rafaela Silva, única medalha de ourViolencias morais 13o do Brasil até agora nesta Rio 2016.

A pernambucana Joanna, que começou a nadar aos três anos de idade, participa de sua 3ª Olimpíada, sendo recordista sul americana por várias vezes, especialmente no nado medley. Na Olimpíada do Rio foi eliminada, passando a receber xingamentos de toda espécie (que ela era uma farsa, que merecia morrer afogada, que devia ser estuprada de novo – ela foi estuprada por seu técnico quando tinha 09 anos).

Já a carioca Rafaela, nascida na mais emblemática favela do Rio, a Cidade de Deus, teve um desabafo estarrecedor falando à TV Globo logo após receber a medalha de ouro na categoria até 57 kg   do judô: O macaco que tinha que estar na jaula hoje é campeão”. O desabafo foi mais do que justo. Nas Olimpíadas de Londres, Rafaela, que era uma das esperanças de medalha, deu um golpe considerado irregular pelos juízes, sendo desclassificada. Foi vítima, via redes sociais principalmeViolencias morais 14nte, de todo tipo de xingamento, não só pela cor e a condição social – daí a macaca na jaula – como pela sua assumida homossexualidade.

Mas Joanna e Rafaela são pessoas famosas, são esportistas vitoriosas… quando ganham, são homenageadas, idolatradas, endeusadas. Quando perdem, ou são logo esquecidas e substituídas por outros ídolos, ou são execradas como indignas de terem recebido o apoio e o aplauso dos torcedores. O ídolo tem que aprender a conviver com a glória e com a desgraça porque a torcida é emocional. O torcedor costuma transformar seu ídolo em tudo aquilo que ele próprio gostaria de ser, e a derrota dele torna-se uma derrota dele, torcedor… E ninguém gosta, realmente, de perder!  No caso de Joanna e Rafaela, que se posicionam claramente na vida, sem esconder sua preferência política ou sua opção sexual, o ódio, em caso de derrota, é mais intenso ainda.

O mais duro é quando o preconceito e a discriminação se tornam difusos, quase uma abstração na vida de milhares e milhares de pessoas que juram de pé junto que não discriminam nem tem a menor restrição de qualquer natureza contra outras pessoas, e convivem numa boa em meio a várias sitViolencias morais 15uações que são claramente discriminatórias e  preconceituosas.

Aquela de obrigar empregadas a usarem apenas o elevador de serviço, por exemplo, é uma das situações mais comuns no Brasil. Ou aquela de obrigar as babás a andarem uniformizadas, e usando branco de preferência…  Às vezes, porém, estas ofensas com as quais os discriminados se acostumam e deixam passar, tornam-se violências morais que,  como na Lei Maria da Penha, não deveriam aguardar a apresentação de queixa por parte do ofendido, e sim serem denunciadas pelos próprios agentes públicos.

É o caso de um condomínio residencial de Ipanema, no Rio de Janeiro, que emitiu uViolencias morais 8ma circular que está bombando nas redes sociais. Na circular, o responsável pelo condomínio lamenta que restos de frutas, pontas de cigarro, fraldas sujas, algodão, cotonetes, lixo enfim, continuem sendo jogados no playground e na garagem. E dedura, textualmente: “Recusamo-nos a acreditar que pessoas esclarecidas da classe média como a quase totalidade dos condôminos do Condomínio, possam adotar tal prática. Por isso, preferimos dar o crédito desse péssimo comportamento a crianças/adolescentes  ou serviçais”.,,

Perdoem-me a indignação, mas de onde o autor da circular tirou que pessoas da classe média são necessariamente esclarecidas? Em que esta figura se baseou para dizer que pessoas esclarecidas também são bem educadas, incapazes de práticas condenáveis? Aonde está escrito que serviçais não são bem educados e responsáveis?  Ou que, por serem mais humildes e menos afortunados, praticaViolencias morais 12m atos inadequados? Será que antes mesmo de soltar a circular, o babaca não percebeu a sua incoerência? Quer dizer que as pessoas esclarecidas da classe média moradoras do condomínio não teriam tal prática, mas seus filhos,  crianças e adolescentes, muito mal educados, teriam?

Infelizmente, discussões nas redes sociais ficam sempre nas discussões e nunca mostram as conseqüências do fato discutido. Gostaria muito de saber se houve algum condômino que protestou, senão pelo preconceito brutal do autor da circular contra os serviçais, pelo menos pela acusação às crianças e adolescentes, filhos da classe média esclarecida moradora do condomínio (esclarecidos ou não, papais e mamães da classe média não admitem que seus adorados filhinhos possam cometer quaisquer atos indevidos).

PS.:  no caso do meu prédio de infância, o Mantiqueira, nós vencemos a parada: as domésticas e os empregados do prédio continuaram podendo usar o elevador social. 

 

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